Além do percurso da sombra: Um Olhar sobre o eu

Além do percurso da sombra: Um olhar sobre o Eu

Por Leonídia Guimarães


Sou uma Sombra! Venho de outras eras,
Do cosmopolitismo das moneras...
Pólipo de recônditas reentrâncias,
Larva de caos telúrico, procedo
Da escuridão do cósmico segredo,
Da substância de todas as substâncias!
Augusto dos Anjos


RESUMO
Este texto foi escrito com o objetivo de oferecer aos psicodramatistas iniciantes uma síntese dos fundamentos teóricos do Núcleo do Eu - Esquema de Papéis sob a ótica de Jaime G. Rojas-Bermúdez. Atendendo ao pedido do grupo, busquei tornar o texto o mais simples e didático possível, inclusive usando figuras explicativas transpostas dos livros do próprio autor. Esboçamos aqui alguns conceitos básicos sobre a constituição do eu - desempenho de papéis, situando o eu como emergente de um núcleo fundante do qual provém no ato do nascimento uma sensação básica de existir representada pelo Si Mesmo Fisiológico – SMF (BERMÚDEZ, 1978). Este núcleo de base passa a constituir-se em meio à grande complexidade do Sistema Nervoso Central e desenvolve-se segundo o percurso primário e secundário de mielinização cerebral, até ocorrer a emergência de um eu incipiente, trazendo como registro histórico a consciência de si mesmo (autoconsciência). A partir deste estágio evolutivo o desenvolvimento do SNC se bifurca em funções hemisféricas distintas, passando o eu a constituir-se como uma dobra que diferencia comportamentos específicos do Eu Natural e Eu Social. Este eu de dupla face encarrega-se de construir sua própria história ao longo da vida, através do desempenho de papéis psicossomáticos, psicodramáticos e sociais. Após a estruturação do núcleo do eu, o eu incipiente deixará para trás as suas sombras (posses sincréticas), integrando-se ao ambiente via o interjogo de papéis articulados as funções psicológicas superiores peculiares à espécie humana como imaginar, planejar, organizar e refletir sobre os próprios sentimentos, pensamentos e ações.

Descritores: núcleo do eu, eu incipiente, eu natural, eu social, esquema de papéis

Núcleo do Eu
A teoria emergentista da personalidade (ROJAS-BERMÚDEZ,1997) nos fala da existência de uma estrutura neurofisiológica chamada núcleo do eu, enraizada na história biológico-cultural  que se inicia no ato do nascimento trazendo toda a herança filogenética da espécie humana. A estruturação do núcleo do eu percorre o caminho das conexões neuronais e perpassa todo o amadurecimento do sistema nervoso central (SNC). Em termos anatômicos, o núcleo do eu corresponde ao Sistema Límbico, centro das funções afetivas que permite definir o que agrada e desagrada, atuando sobre o estado emocional, as atividades motoras e as viscerais. Para tanto, funciona através de padrões motores fixos pré-programados geneticamente no ser humano. Vai se organizando em consonância com a complementaridade oferecida pelo meio, que também lhe coloca a serviço suas estruturas genéticas programadas externas (EGPE), configurando os papéis psicossomáticos, entendidos como estruturas genéticas programadas internas e eternas (EGPI-EGPE) e como fonte dos registros neuronais das marcas mnêmicas que são impressas no SNC como fruto da vivência desses papéis, após o nascimento.   A vivência do primeiro papel psicossomático inicia através da relação boca-seio, tendo a mãe e todos os demais componentes externos e internos como facilitadores: atenção, sensação, tonicidade, imagem sensorial, vigilância, calor, cheiro, carinho, proteção, tato, paladar, visão, audição, fome, sede; seguida pela mediação dos cuidados maternos em relação à produção de fezes e urina e dos eventos internos mediados pela relação continente – conteúdo como boca – estômago, ânus – fezes e uretra – bexiga, a partir do que o bebê passa a controlar a expulsão – retenção desses conteúdos internos.  
Neste primeiro universo infantil ainda não existe nenhuma diferenciação eu – mundo. Para a estruturação dos papéis psicossomáticos o bebê vai guiando-se pela atenção e focalização dos estímulos interoceptivos e proprioceptivos, neurofisiologicamente conectados aos estímulos exteroceptivos. Tais estímulos correspondem às funções sensoriais e psicológicas elementares reguladoras do tônus e vigília, comuns a todos os animais: percepção interna de órgãos e vísceras, reconhecimento espacial do corpo, posição e orientação, reconhecimento de estímulos externos, sensação, atenção, integração modal, percepção, memória, visão, somestesia, olfato e emoção (LURIA, 1981).
A noção geral deste primeiro universo infantil assemelha-se à concepção da Matriz de Identidade concebida por Jacob Levy Moreno e Florence Regina Moreno (9), mas inspira-se predominantemente no processo de mielinização cerebral (BERMÚDEZ,1997), considerando-se a evolução das funções cerebrais em seus diferentes tempos: As zonas primárias de mielinização precoce correspondem às áreas motora (Área 4), sensitiva (Área 1), visual (Área 17), auditiva (Áreas 41 e 42) e às estruturas límbicas; as zonas de mielinização intermediárias correspondem ao córtex de associação (integração das funções somáticas e vegetativas); e as zonas terminais abrangem às conexões sinápticas e não-límbicas que se distribuem por todo o córtex motor, auditivo, visual, táctil, olfativo, etc. e que é fundamental no processo de aprendizagem. Sabemos através das neurociências que o processo de mielinização das zonas primárias atinge o pico evolutivo aos 24 meses (que é o tempo estimado por Bermúdez para a estruturação do núcleo do eu). Embora o controle esfincteriano uretral seja o marco da estruturação do papel de urinador, considera-se normal que até os quatro anos de idade a criança possa ainda não ter alcançado o controle voluntário dos esfíncteres. Bermúdez coloca que a enurese só se caracteriza ao prolongar-se além deste período. O mesmo deve servir para a ecoprese.

Outra diferenciação da teoria emergentista da personalidade em relação à teoria Moreniana, nos parece essencial: Para Moreno os papéis psicossomáticos seriam todos os papéis somáticos como os de respirador, comedor, andador e outros, incluindo aí o papel sexual. Para Bermúdez o papel sexual faz parte de aspectos mais gerais do desenvolvimento, e são considerados papéis psicossomáticos apenas os papéis funcionais que servem à sobrevivência do organismo e que não se encontram automatizados ao nascer, restringindo-se apenas aos papéis de ingeridor, defecador e urinador. O primeiro, por exigir um papel complementar para o seu desempenho e os demais por estarem em dependência neurofisiológica do controle esfincteriano anal e uretral. 

Outro aspecto singular é que as dimensões somáticas desses papéis estão inseridas na teoria do núcleo do eu sob a perspectiva teórica das três áreas do psiquismo, defendida por Pichón Rivière, definindo três zonas específicas chamadas de área mente, corpo e ambiente, perpassadas por linhas divisórias que correspondem aos três papéis psicossomáticos que representam, teoricamente, as marcas mnêmicas dos primeiros papéis e experiências memorizadas no SNC (Sistema Límbico), conforme se vê a seguir:

 1. Papel de Ingeridor  : Destaca o Papel Psicossomático de Ingeridor como 1°Modelo infantil de incorporação  e simbiose.  Nele há diferenciação entre as três áreas - mente, corpo e ambiente; reações a partir do SMF - Fase do Duplo

 2. Papel de Defecador : Com a estruturação dos papéis de Ingeridor e Defecador, a criança passa a diferenciar o que ocorre dentro e fora de si mesmo (PI e PD) e configura-se o Modelo Psicossomático de Defecador, com a delimitação da área Ambiente (conteúdos externos e experiências interiorizadas) -   Fase do Espelho
       
3. Papel de Urinador: Fecha o ciclo do 1° Universo da Matriz de Identidade, diferenciando a área Mente (Pensamento, Imagens, Linguagem - mielinização do Neocórtex) da área Corpo (sensopercepção, emoções, sistema neurovegetativo).  Estrutura-se o Modelo de Urinador.

O Modelo Psicossomático de Urinador dá início à integração dos 3 papéis psicossomáticos (PI, PD, PU) às 3 áreas do psiquismo ( Ambiente, Mente, Corpo)  e com isso surge um EU INCIPIENTE como representante do EU NATURAL, engajando a criança na Mariz Social,  dando início à fase de pré-inversão e  INVERSÃO DE PAPÉIS  ( EU SOCIAL). Esse assunto abordado melhor posteriormente.

A imagem abaixo representa um gráfico geral de todo este processo de desenvolvimento do Núcleo do Eu- Esquema de Papéis, desenvolvido por Rojas-Bermúdez: 





                                                           
 1: O círculo externo representa o Si Mesmo Fisiológico (SMF), responsável pela filtragem de estímulos externos, uma função específica do SNC (Sistema Neurovegetativo). Com a estruturação do papel de ingeridor (linha à direita), aos 3 meses do nascimento, o bebê descobre o afora oral e já pode dispor do Modelo de Ingeridor como paradigma da relação boca-seio.

 2: Com a estruturação do papel de defecador (linha à esquerda) delimita-se a área ambiente e inaugura-se o afora anal (8 meses) como modelo neurofisiológico, dando início ao processo de individuação e separação do seio materno e depositação das perdas (controle do esfíncter anal), encaminhando o bebê para a exploração do ambiente, para além do SMF.

 3: Ao ser estruturado o papel de urinador (linha superior) aos 2 anos de idade, a criança delimita as áreas mente e corpo, toma consciência do eu e não-eu e passa a vivenciar o mundo como um afora uretral engajando-se ao ambiente através da emergência de um eu incipiente.

É importante destacar que as experiências básicas e registros do núcleo do eu permanecem como formas de comunicação natural (Von Wüelkull,) usadas ao longo da vida, assinalando suas características essenciais em eventos futuros, conforme refere Bermúdez:

a) o nascimento, como modelo neurofisiológico de mudanças fundamentais na vida;
b) o papel de ingeridor como modelo neurofisiológico da dependência nutricional e da separação de conteúdos corporais dos ambientais;
c) o papel de defecador como modelo neurofisiológico da depositação de conteúdos internos, da criatividade e discriminação entre o mental e ambiental;
d) o papel de urinador como modelo neurofisiológico de controle de conteúdos internos, do prazeroso e emocional, e da diferenciação entre mente-corpo (Bermúdez, 15: p.412).

Processo de Estruturação do Eu
A emergência do eu incipiente inicia após a estruturação do papel de urinador, aos 2 anos. Sua função é integrar todas as experiências prévias pertencentes ao núcleo do eu às experiências posteriores, até completar-se a estruturação do eu.

 Com a estruturação dos papéis psicossomáticos e estabelecimento do controle esfincteriano a intervenção do neocórtex nas atividades cotidianas passa a ser dominante (Hemisfério Esquerdo) e a criança começa a desenvolver o sistema simbólico através da memória, linguagem, sentido de lateralidade e temporalidade, o que lhe permite manter uma relação de permanência com o meio ambiente e passar a criar vínculos com as suas posses sincréticas. Sob a intervenção crescente do neocórtex, a produção de imagens mentais processadas no sistema nervoso (Fissura Calcarina) atinge o simbólico e traz a possibilidade de pensar e refletir sobre atos, pensamentos, acontecimentos e afetos, fomentando aprendizagens. A partir daí o eu configura-se como uma dobra que espelha em sua face interna o núcleo do eu, articulando-se com o  mundo externo com a sua face externa (eu social), desdobrando o Eu em dois subsistemas: eu natural e eu social. Fonte: Bermúdez, Teoria y Técnica Psicodramáticas, p. 417

Evolução Psicológica: Das posses sincréticas para além das Sombras.   


A figura acima (fig.5) esquematiza o processo de triangulação e vinculação do eu ao meio ambiente. Vejamos a seguir de que forma se dá esta evolução psicológica das posses sincréticas do eu incipiente para além das sombras, articulando a criança ao mundo social. É importante dizer que durante a estruturação do papel de urinador, o SMPS representa a noção de mundo infantil permeado pelo sincretismo das suas posses, assinalando a continuidade da experiência como própria (o meu): tudo o que se aproxima do universo da criança é percebido como posse sincrética (Fig.5:1). Gradualmente e sob a influência crescente do neocórtex articulando os processos de elaboração de imagens e pensamentos, a criança passa a discriminar suas posses (Fig.5:2) e começa a estabelecer os seus primeiros vínculos, dando início à estruturação de alguns papéis de fantasia em relação a essas posses (Fig.5:3). Pode então imaginar-se como se fosse outro (um personagem) e desempenhar o seu papel como brincar de ser a mamãe, o cachorro, o príncipe ou a cinderela. Depois, passa a eliminar essas posses, suportando as perdas, e pode fazer relações com pessoas e objetos a partir de si mesmo, ultrapassando os limites do SMPS (Fig.5:4). Ou seja, abandona o sincretismo das suas posses e passa a viver seus papéis para além das sombras (desse si mesmo sincrético imaginado para forjar a si mesmo), inscrevendo na experiência o sentido de temporalidade e diferenciação de papéis de fantasia X realidade. Com isto, dissolve-se o sincretismo das suas posses e estas são projetadas sobre o Eu Natural, como sombras (Fig.5:5). Fecha-se aí um ciclo de individuação articulada à noção de Eu Natural, no qual o indivíduo adquire existência própria e singularidade como pessoa. Essas vivências pregressas são registradas na memória, passando a fazer parte de sonhos e recordações. Então, durante o período de sincretismo a criança passa a estabelecer relações de fantasia com as suas posses, incluindo aí pessoas e objetos, e essas posses depois se transformam em sombras que guardam as memórias, sonhos e recordações dessas primeiras relações sincréticas da criança. É importante dizer que Rojas não faz uso do conceito de sombra Junguiano. Para Jung as sombras representam aspectos negativos do self, normalmente pouco acessíveis à consciência e que se estendem aos arquétipos, como inconsciente coletivo. Para Bermúdez não há um sentido de valoração envolvendo a experiência. As sombras representam as projeções das posses sincréticas do eu incipiente (relações construídas neste período), sobre o Eu, e assinalam a transformação do SMPS em si mesmo psicológico (SMP).
Prosseguindo a análise desse processo de vinculação da criança ao ambiente social, vimos na Fig.5, que a dissolução do SMPS dá lugar ao Si Mesmo Psicológico (SMP), que passará a fazer parte da estrutura de personalidade servindo-lhe de “radar” na identificação de climas afetivos, sentido de territorialidade-intimidade e distância, familiaridade, estranhamento e perigo, ou circunstâncias externas que ameacem ou agridam a criança. Com as projeções das Sombras sobre o Eu, o universo da criança se enriquece e entram em cena papéis mais estruturados que incluem um contrapapel (meu pai e minha mãe). Para Bermúdez estes papéis são papéis potenciais que servem de apoio para a aprendizagem de papéis sociais, no futuro.
Finalizando esta etapa de individuação, com a descoberta dos papéis complementares tem início o processo de triangulação, permeada, segundo Bermúdez, pelo complexo de Édipo (Fig.5:6). Essas relações vinculares vão povoando situações nas quais a criança permanece como terceiro excluído, podendo apenas observar de fora ou participar como coadjuvante, não atuando como protagonista. Avançando um pouco mais, o processo de triangulação dá início às relações interpessoais dentro e fora da família, mediante a articulação da criança à rede social e seu o ingresso na escola (15).
O eu se enriquece através do jogo de papéis sociais existentes na estrutura social, configurando outros vínculos mediante o uso das experiências anteriores, e possibilitando à criança experimentar e observar tudo o que vê, sente, ouve e pensa, refletindo sobre os eventos e passando também a imitar as ações dos adultos. Já pode inverter papéis com base no conhecimento adquirido, o que em psicodrama se chama de role-taking. A criança usará então suas experiências sócio-afetivas e interpessoais como modelos posteriores de conduta e mediação durante o processo de aprendizagem de papéis (Fig.5: 7).

Especialização de Funções nos Hemisférios Cerebrais

Na teoria de Rojas Bermúdez, as funções do Eu Natural e Eu Social correspondem às funções cerebrais da especialização hemisférica, conforme demonstro no quadro abaixo:


Quadro A: Especialização hemisférica

No quadro acima, merece destaque, para o que estamos tratando aqui, a função especial da prosódia quanto à percepção dos climas afetivos durante a infância. Os estudos da neurolinguística apontam para a importância das várias entonações da voz na decodificação da linguagem, interpretação de seus conteúdos e dos estados de animo. Bermúdez assinala que é a partir daí que as crianças ampliam sua concepção de papéis fazendo uso da Memória, do Jogo e da Dramatização no treinamento de papéis (role-playing), podendo usar criatividade e intuição. Por exemplo, ao ouvir os contos de fadas, pedem repetições até que consigam praticamente decorar o texto. E sua compreensão do conteúdo vai sendo absorvido a partir da prosódia; será tanto melhor quanto mais expressiva a entonação de voz usada pelo adulto. É interessante destacar, também, que as pesquisas na área da neurolinguística demonstram que as mulheres (pesquisas realizadas com adultos) são mais sensíveis às entonações prosódicas que os homens, em caso de dúvida sobre o conteúdo, o que prevalece é a prosódia. Usariam as mulheres, mais que os homens, do seu cérebro emocional? Em termos das funções hemisféricas é importante destacar que, embora os neurocientistas já tenham chegado ao acordo de que o nosso cérebro funciona em uníssono, de forma paralela e integradora, os dois hemisférios cerebrais se distinguem em funções globais e específicas, conforme vimos no Quadro A: O hemisfério esquerdo controla o lado direito do corpo e vice-versa. Comanda as habilidades verbais, mantendo o sentido temporal e seqüencial dos fatos. Traduz as percepções e representações lógico-analíticas como leitura, escrita e cálculo. O hemisfério direito controla as habilidades não-verbais, guiando-se pelo comportamento instintivo, emocional, viso-espacial, simultâneo, intuitivo e analógico. Se expressa através de imagens, sonhos, sensações e metáforas. Realiza a compreensão unitária de jogos, configurações e estruturas complexas, percebendo figuras a partir de diversos ângulos e perspectivas. Concentra-se na percepção do todo baseando em suas partes e engloba conceitos lógicos de forma abstrata. É atemporal e se utiliza da linguagem corporal, carecendo de gramática, sintaxe e semântica.
Observemos a seguir, o quadro abaixo, retirado de um trabalho apresentado no XVI Congresso Brasileiro de Psicodrama (4):   




Quadro B: Subsistemas Cerebrais

Como se pode ver acima, o sistema nervoso central foi subdividido, na teoria de Bermúdez, em dois grandes subsistemas:
§         Subsistema Natural: núcleo do eu, que corresponde ao sistema límbico; a dobra interna do eu, chamada de Eu Natural, que corresponde às funções do hemisfério direito; e o si mesmo psicológico, que corresponde às funções do sistema neurovegetativo. Aqui se desenvolve a comunicação natural própria da raça humana, enraizada no biológico.
§         Subsistema Social: Eu Social, cujas funções correspondem ao hemisfério esquerdo; a Estrutura Social e os Papéis, vinculados ao sistema sensoperceptivo e motor; e o Esquema de Papéis, mais pertinente às funções temporais, simbólicas e associativas do neocórtex. Forma de comunicação social, enraizada no que Maturana e Varela chamam de acoplamento estrutural, biológico e cultural (7).  

Organização do Esquema de Papéis 
Com a emergência do eu natural e social, o estabelecimento de vínculos e o jogo de papéis aprendidos na rede familiar, inicia-se o desenvolvimento de Papéis Sociais, passando o núcleo do eu a fazer parte do Esquema de Papéis, uma vez que o funcionamento do nosso cérebro ocorre de forma integrada, associando os dois hemisférios cerebrais (ECCLES, 1994; GAZZANIGA, 1998; GOLDBERG, 2002).
Vejamos um pouco do esquema de papéis adaptado à teoria do núcleo do eu, detalhando suas principais características e os diferentes sentidos atribuídos às partes que compõem este esquema referencial teórico. Fundamentado na neurofisiologia e neurobiologia, Bermudez agrega à sua teoria também, algumas noções psicanalíticas quanto às três áreas do psiquismo e, creio eu, da teoria dos vínculos, cuja dinâmica fenomenológica imprime um constante movimento às relações interpessoais através de três dimensões operacionais: o depositário como aquele que recebe o depositado expresso no conteúdo que é colocado e o depositante como aquele que deposita (PICHÓN-RIVIERE, 1980). Funções que podemos associar aos papéis de ingeridor, defecador e urinador, dado às suas semelhanças, e que guardam os seus sentidos simbólicos relativos aos papéis de terapeuta, como depositário, e do paciente como depositante.
Posto isto, passemos à compreensão do Esquema de Papéis desenvolvido por Rojas - Bermúdez (desenhado na Fig.6), ao qual acrescento algumas anotações pessoais baseada nos estudos de Eccles, Gazzaniga e Goldberg (1, 2 e 3).   

            
                                                                       *1*
Limite do si mesmo psicológico (SMP): é a estrutura neurofisiológica que mantém o sentido de territorialidade, contraindo-se em situações especiais de aquecimento como nas relações íntimas e sexuais, que funciona como um radar que capta as impressões do mundo exterior e  as envia ao núcleo do eu, podendo-se a partir daí entrar em estado de alarme (V) e se expandir para além da situação de conforto. O que complica sobremaneira o desempenho de papéis. Nesses casos, apenas os papéis muito bem desenvolvidos poderão ser atuados, permanecendo o eu em estado de tensão e pouca criatividade, pelo enrijecimento da capacidade no desempenho de papéis e operacionalização da complementaridade de papéis. Esta é uma função muito importante para que o indivíduo possa planejar e executar ações socialmente assumidas pelo eu.  Neurofiologicamente a função de planejamento e execução do eu-papéis estão vinculadas aos lobos frontais (GOLDBERG, 2002); e a função de recepção e controle de estímulos é realizada pelo Sistema Nervoso Autônomo (Visceral ou Neurovegetativo), associado ao Sistema Periférico (Simpático e Parasimpático). Voltando um pouco ao que já foi  anteriormente colocado em relação ao processo de mielinização cerebral (p.1), a evolução do Si Mesmo Fisiológico para Si Mesmo Psicológico nos remete às áreas de mielinização terciária, cujo processo de amadurecimento permite ao eu evoluir das funções sensório-motoras e psicológicas elementares (sensação visceral, atenção, percepção somestésica, interoceptiva, proprioceptiva e exteroceptiva) para as funções psicológicas superiores: memória mediada pela aprendizagem, cognição, pensamento e linguagem.
*2*
Eu: Entendido aqui como cérebro executivo (GOLDBERG, 2002), corresponde ao Eu Social proposto por Bermúdez, representado na Fig.6 por um círculo radiado contendo um rol de papéis, classificados como papéis desenvolvidos, pouco desenvolvidos, bem desenvolvidos, papel complementar e pseudopapel. Este último mantido apenas através da pressão social. Lembrando que todos os papéis funcionam em complementaridade e são aprendidos no contexto social, de acordo com as possibilidades de vinculação e aquisição de conhecimentos nas redes sociais.
*3*
Papel bem desenvolvido: são papéis capazes de operar em situações complexas e de relativa tensão emocional ou ambiental, indo além do estado de alarme do si mesmo psicológico e operando com autonomia.
*4*
Papel pouco desenvolvido: papéis com dificuldades de conectar-se aos contra papéis ou atuar em situações de alarme, dado à expansão do si mesmo psicológico. Normalmente exigem correção de conduta e, estando o indivíduo em processo terapêutico é útil a introdução de objetos intermediários para a produção de vínculos, uso de dramatização, role-playing e demais técnicas psicodramáticas, sendo relevante o uso da construção de imagens para facilitar a reaferência de novas aprendizagens nos circuitos cerebrais.
*5*
Papel complementar: são relações sociais que se estabelecem de papel para papel, como os papéis prescritos de professor-aluno, terapeuta-paciente, chefe-funcionário, etc. Aqui não existe muita possibilidade de alteração do papel social, há sempre um padrão de desempenho a ser seguido par e passu. Gosto de chamá-los de papéis instrumentais, pois funcionam como um instrumento durante o seu manuseio.
*6*
Vínculo: são relações interpessoais iniciadas na família e que se expandem posteriormente para as relações com amigos, colegas, vizinhos e conhecidos, incluindo-se também nas relações complementares que envolvem papéis sociais em família como marido, esposa, mãe, filho, irmão, namorado e outros vínculos de parentesco. Das relações vinculares com as suas posses e sombras, as pessoas imprimem diferentes tonalidades afetivas aos seus vínculos sociais, podendo vivenciá-los como alegres ou tristes, aborrecidos ou desconfiados, afetuosos ou frios, brincalhões ou sérios, etc. e tais vínculos permeiam também as relações papel e contrapapel às vezes facilitando, outras complicando o desempenho de papéis profissionais, conforme encontramos na clínica. Por isso, além do treinamento de papéis, realizado através do role-playing e da sociodinâmica, emergem conteúdos mais pertinentes ao contexto psicoterapêutico, exigindo a demarcação de limites éticos para os diferentes contextos (GUIMARÃES, 1998).
*7*
Pseudopapel: são papéis aprendidos rigidamente a partir das exigências do meio social e mantido sob pressão social constante, sem conexão com as possibilidades de integração, expansão e criatividade do eu, exigindo treinamento constante, vigilância e esforço interno contínuo. Pode ser jogado como um papel personagem, com um script pré-programado que não vai além do já conhecido e exigido pela função social que mantém seu desempenho. Pode também, ao longo da vida, deixar de funcionar no nível minimamente aceitável pelo social e assim, ser retirado de cena. Pode, ainda, ocasionar o desencadeamento de doenças incapacitantes no nível mental ou orgânico, motivado pela sobrecarga egóica, ou transformar-se em atos de infração às normais sociais vigentes como roubo e homicídio. Neste caso, Bermúdez salienta que o papel desempenhado anteriormente passa a ser considerado um pseudopapel (15).
*8*
Contexto que mantém o pseudopapel: no gráfico (Fig.6) está representado com as ranhuras de sustentação postas pelo complemento ao pseudopapel, correspondendo ao que possibilita o seu desempenho social dentro da área do si mesmo psicológico, uma vez que o pseudopapel não possui sustentação interna para ser exercido em estado de alarme (para além do SMP).
*9*
Núcleo do eu (no centro do eu): neste momento evolutivo passa a ser contido pelo Eu Natural. Contém todas as marcas mnêmicas pregressas, conectadas ao sistema límbico, fornecendo informações  paralelas que se associam ao neo-córtex durante o desempenho de papéis (Esquema de Papéis). Como sabemos, o neo-córtex caracteriza-se pela sua grande plasticidade cerebral, mantendo-se passível a mudanças durante toda a vida graças às conexões sinápticas que aí são processadas, gerando a criação de novas redes neuronais para a (re) aferência de aprendizagens. Afora isto, o núcleo do eu mantém sua constituição original, cabendo ao eu a elaboração dos mecanismos propícios as novas reaferências, através da experiência.
*10*
Objeto intermediário: são técnicas especiais de aquecimento criadas por Bermúdez como forma de mediação instrumental. Usamos como objetos intermediários e intra-intermediários a  música, bonecos, fantoches, silhuetas, psicodança, desenho, pintura, contos de fadas, etc. Os objetos intra-intermediários se diferenciam dos intermediários pela sua produção, do interior para o exterior como a confecção de um desenho, um conto, um poema, etc. Os intermediários funcionam como objetos transacionais e são manuseados pelo próprio psicodramatista para facilitar o desempenho de papéis ou restabelecer os vínculos.
*11*
Relação papel complementar si mesmo: são relações que não se complementam, esbarrando no si mesmo psicológico e resultando em desvinculação do papel complementar. O vínculo torna-se não operacional, dado ao alto grau de compromisso pessoal e elevada repercussão emocional. O indivíduo entra em confusão, suas reações são globais e o estado de alarme torna a presença do estímulo angustiante, provocando reações de fuga, excitação e ensimesmamento (15 p. 223).

Finalizamos aqui esta breve exposição teórica relativa à abordagem neuropsicológica da constituição do eu - desempenho de papéis, ciente de que muito mais poderia ser escrito, mas por hora, foi o que ocorreu como contribuição para outros pensares.

Referências Bibliográficas
1.  ECCLES, C. John. Cérebro e Consciência. Lisboa: Instituto Piaget, 1994
2.  GAZZANIGA, S. Michael. O Passado da Mente. Lisboa: Instituto Piaget, 1998
3.  GOLDBERG, Elkhonon. O Cérebro Executivo. São Paulo: Imago, 2002
4. GUIMARÃES, A. Leonídia. Atualização do Núcleo do Eu à Neurociência. Recife: XIII Congresso Brasileiro de Psicodrama, 2008
5.  ............................................... Psicodramas Públicos e Limites Éticos. São Paulo: Revista Brasileira de Psicodrama. Vol.6 N.2, p.71-78. FEBRAP, 1998
6. LURIA, R. Alexander. Fundamentos da Neuropsicologia. São Paulo: EDUSP, 1981
7. MATURANA, R. Humberto e VARELA, J. Francisco. A Árvore do Conhecimento (1984). São Paulo: Palas Athena, 2001
8. MATURANA, R. Humberto e YÁÑEZ, D. Ximena. Habitar Humano em Seis Ensaios de Biologia Cultural. São Paulo: Palas Athena, 2009
9. MORENO, L. Jacob. Psicodrama. São Paulo: Cultrix, 2ª. Edição em português, 1978
10. MOYANO, F. Graciela Cristina. Adolescência Tardia. Dificuldades en lo processo de independización. Sevilha: Apuntes de Sicodrama ASSG, 2006
11. PICHÓN-RIVIÈRE, Enrique. Teoria do Vínculo. São Paulo: Martins Fontes (1980), 1982
12. ROGER, Gil. Neuropsicologia. São Paulo: Ed. Santos, 2ª. edição, 3ª.reimpressão, 2007
13. ROJAS BERMÚDEZ,G. Jaime. Núcleo do Eu. São Paulo: Vol. I, Natura, 1978
14. .................................................Avances em Sicodrama. Buenos Aires: Celcius, 1988
15. .................................................Teoria y Técnica Psicodramática. Barcelona: Paidós, 1997
16. ...............................................Algunas Consideraciones Neurofisiologicas acerca del  Nucleo del Yo. Sevilha: Boletim no. 23, ASSG, 2008
17. ................................................ Hemisférios cerebrales y estructuras del Yo. Sevilha: Boletim no. 23, ASSG, 2008



Leonídia Alfredo Guimarães
Psicóloga Clínica
Psicodramatista Didata Supervisora pela ASBAP/FEBRAP
Salvador - Bahia, Outubro de 2009.


Comentários

Recebi algumas dúvidas sobre este texto. Em breve postarei meus comentários! Abraços.
Leonídia

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