Texto Comentado, por Leonídia Guimarães e Hélide Gonçalves

Reflexões sobre os filmes O Discurso do Rei e Cisne Negro
Tema discutido na saladebatepapo-psicodrama. Março de 2011

Leonídia Guimarães, em 19/03/2011 20:02:52
Psicóloga e Psicodramatista Didata
Didata Supervisora na ASBAP
Moderadora da saladebatepapo-psicodrama


SINÓPSE
Filme de Tom Hooper, com roteiro original de David Seidler, ganhador de quatro estatuetas do Oscar, este ano, como melhor filme, ator, diretor e roteiro original, além de vários outros prêmios e indicações no Festival de Toronto, Independent Sprit Awards, Goya e Bafta. O filme expõe e coloca uma lente de aumento nos bastidores da realeza britânica, baseando-se no livro O Discurso do Rei – Como um Homem Salvou a Monarquia Britânica, escrito pelo cineasta americano Mark Logue, neto do terapeuta, com a colaboração do jornalista e pesquisador Peter Conradi. Vimos na tela do cinema que os principais obstáculos enfrentados pelo rei George VI era a sua sofrível performance como orador. Para superar a sua gagueira o nobre contratou os serviços de um plebeu austríaco que sequer tinha reconhecido um diploma de médico.


DISCUSSÃO
Caros,
O dia amanheceu chuvoso aqui na Bahia, envolvido nas águas de março. Curvei-me às condições climáticas e me rendi ao computador. Vi o Brasil no maior agito recebendo à altura de Rei o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama. Lembrei-me que está previsto para hoje o grande Perigeu lunar e, fiquei em dúvida se poderia desfrutá-lo ao cair da tarde quando normalmente este astro desponta no horizonte para iluminar a escuridão da noite. Minhas divagações me levaram às metáforas e pensamentos simbólicos, normalmente explorados em filmes e obras de arte. Passei a imaginar a superlua de hoje como uma metáfora da Troca de Guarda da Rainha, um ritual diário vivido no Palácio de Buckingham, que tive oportunidade de assistir na minha passagem turística pela Inglaterra, em 1997. Fui fisgada pela imagem, atribuindo a Terra o lugar de Rainha, com o Sol cedendo lugar à Lua. 
Como podem ver os conteúdos simbólicos do filme O Discurso do Rei também mexeram comigo. Também não pude me furtar a lembrar outro filme em cartaz: Cisne Negro, de Darren Aronofsky, com Natalie Portman, que ganhou o Oscar de Melhor atriz, por seu desempenho no papel de Nina, uma bailarina dedicada à sua arte, mas atormentada por um vínculo simbiótico com a mãe, descoberta e conduzida ao estrelato por um professor que a seduz e intervém em seu mundo particular, tentando transformar a rigidez corporal que reduz o seu desempenho como bailarina.  
O primeiro filme me reportou ao Psicodrama. Não consegui definir ao certo se as minhas reflexões me levariam a transcender certa tendência, posta no filme, ao referencial monástico, tema prosaico interposto ao cotidiano do protagonista pela figura do Bispo investigador das credenciais do terapeuta. Valorizar-se-ia mais uma leitura pela angular exótica dos dramas familiares, como bem fez a nossa querida colega Laurice Levy, na matéria enviada para esta Sala, também publicada no seu Blog pessoal : http://integrarepsi.com/em_nome_do_rei_14.html
Ou, me prenderia ao referencial de partida, percorrendo o imaginário simbólico posto como metáfora, enfocando a ação do “terapeuta da fala” como um contraventor do academicismo, disposto a curar a gagueira do rei com métodos não-ortodoxos, desautorizados pela academia e pela Igreja? Sem leme, me dispus a deixar fluir os pensamentos, transcendendo este viés, quiçá emblemático, de alguma pretensa ofensa à arte dramática, adotada pelo terapeuta. E nós, será que podemos enxergar este viés,  tão comum aos gênios percussores na área da psicoterapia, como sinal do reconhecimento mundial do pioneirismo de J.L.Moreno? 
Há algo a ser pensado, neste sentido. Tenho visto muitas mensagens e textos na mídia analisando o Cisne Negro sob a perspectiva da psicologia analítica de C.G.Jung, a respeito do drama vivido por Nina. Neste filme, que para muitos teria merecido vencer o Oscar, o roteiro superou as expectativas dos críticos no quesito análise de conteúdos. Por isso parei um pouco para pensar esta questão, sobretudo no que pode ser feito para fazer valer a nossa perspectiva teórica em relação aos métodos do designado “terapeuta espontâneo”. Não tenho visto na mídia, ou meio psicodramático, o mesmo boom de comentários analisando o tratamento da gagueira do rei. Não seriam relevantes tais análises? Seria tal silêncio motivado pelo enfoque do filme mais na técnica? Ou os meandros da metodologia espontânea nos fizeram deixar de lado a análise teórica? Será que percorrendo esses aspectos, talvez pudéssemos iluminar algumas pontes entre o filme vencedor do Oscar e os pilares do Psicodrama?
Amigos, como é forte e penetrante a linguagem simbólica e metafórica das obras de arte! Estamos talvez cabisbaixos, com as similaridades, ou satisfeitos e orgulhosos com o que vimos na tela do cinema? Imaginem quantas indagações fashions passaram pela minha cabeça e, também, digam-se de passagem, não me escapou o sentido pejorativo atribuído pelos psicanalistas à palavra discurso. Neste sentido, as análises junguianas em relação ao Cisne Negro, parecem mais alvissareiras. O Cisne Negro me reportou ao envolvimento de C.G. Jung com Sabina Spielrein, a paciente seduzida pelo gênio da arte analítica, tão singular para a psicanálise quanto J.L.Moreno. Ambos por terem transgredido algumas normas sagradas da psicanálise. Por isso resolvi escrever e parar de pensar na superlua do Perigeu Lunar e em Barack Obama, tentando escarafunchar as pegadas do imaginário simbólico que hoje me habita. Quem sabe, em outro momento, possamos nos remeter aos protocolos deixados por Moreno. Deixo aqui, como provocação, as minhas primeiras impressões sobre O Discurso do Rei e aguardo comentários. 
Não por acaso, estamos próximos ao dia 01 de Abril, data comemorativa dos 90 anos do 1° Psicodrama Público dirigido por J.L.Moreno em plena Áustria do pós-guerra, no qual foi disponibilizada ao público um trono em palco improvisado, em meio a uma platéia atônita, com a proposta de escolher um rei que representasse os anseios da platéia. Nenhum candidato foi escolhido. E sabemos que após várias outras tentativas de desenvolvimento do Psicodrama em Viena, Moreno resolveu em 1925, mudar-se para os Estados Unidos. Foi nesta nova pátria que o Psicodrama atingiu o apogeu e a glória, tornando-se conhecido e disseminado pelo mundo.  Vamos escrever mais sobre tudo isso? O convite está feito.

Comentários de Hélide Gonçalves
Psicóloga e Psicodramatista
Em 19/03/ 2011 22:13:06

Cara e querida
Sequer sei dizer se entendi tudo o que foi colocado com clareza, mas, de uma coisa tenho certeza... me encantou! Talvez por falar de coisas incrivelmente adoráveis como reis, cinema, lua e sol e uma tarde preguiçosa.  Ao perceber o quanto você se esforçou no detalhamento das informações sobre os filmes (que, aliás, adorei loucamente) me perguntei sobre uma possível intenção didática... ou... esclarecimento? Apenas me perguntei, curiosamente, pois estas menções são raras e gostei de tê-las expostas.  Atores?  Os melhores... todos! Diretores? Brilhantes! Roteiristas? Perspicazes! Diálogos contundentes! Mensagens submersas!
Terapeutas casuais e espontâneos todos nós, algum dia, em algum momento!  Técnicas? Necessárias... montadas, construídas, estudadas, experimentadas e, sem sombra de dúvida, dinâmicas. O que poderia ser aquele beijo de todo corpo do diretor do ballet em Nina? Intencional? Um misto de técnica e desejo? Interpolação de resistência? E... antes de ter este nome? Parece-me que tudo antes de ter um nome e uma descrição teve a Direção... e teve um Roteiro... do Discurso de um REI que colocou pernas, braços e boca nas palavras, alma no texto, estrada na queixa, cor nos suspiros e chão no ar!  O que vem antes? Não importa!  O trono vazio pode ser ocupado por este rei, que ali nos coloca em seu colo, reis e rainhas também todos nós!  Ou nada. Mas o nada que permite ir além e não delimita.  Os dois filmes mexeram muitíssimo e lindamente comigo. Pela arte, pelo suposto, pela sutil sugestão da alma por detrás. Propostas diferentes em iguais vísceras, expostas ou não. Lindos e suaves em nos guiar a um desfecho interior de inúmeras conclusões. Ricos em nos fazer voltar a olhar pessoas e suas angústias e limitações, pressões x desejos, e mãos... que podem ser dadas e doadas para um grande ou pequeno suavizar do peso carregado. A cada época, lugar e UM... seu peso.
Como pensar uma mãe rainha ao ver seu filho, futuro rei, cair em prantos e não “poder” lhe abraçar? E um irmão que o alcança logo após e pergunta: – O...que ...foi...aquilo? E uma dançarina que coloca na técnica toda a excelência de seu trabalho rasgando-se em metades incongruentes por não  conseguir se beijar a alma? 
O rei de que falamos, com seu “Discurso Atuante e Aberto” a outras possibilidades ao menos tentou ler em todos estes espaços a falta de! E construiu, a duras penas, agulhas e linhas para este alinhavo cujo acabamento cabe a qualquer um que ali se colocou e coloca, dispondo-se a ser orientado na costura.
Ao rei este trono!  Ao trono... os reis! Não tenho a menor ideia se fui clara, não foi esta a intenção. Apenas me permiti divagar e beber cada palavra caminhante.
    ”... esta voz quando se mostra
              tem um jeito de dançar
                   rodopia em minha volta
                        e eu não posso controlar...”       
                                                                    
Resposta de Leonídia Guimarães, em 20/03/2011 23:45:29

Que delícia Hélide! Maravilha de comentário. Eu também penso que Jung se deixou levar, no bom sentido, pela sua sensibilidade télica. E assim encontrou o caminho a seguir. Com aquela paciente, extraordinariamente sábia e sensível, procedimentos convencionais pareciam não funcionar, a demanda básica era de amor, envolvimento humano, capaz de despertar o lado saudável da “princesa” imersa no gozo insano da doença. Vimos isso melhor no filme Jornada da Alma do cineastra italiano Roberto Faensa (2002), baseado na história real vivida por C.G.Jung no início da sua carreira. Filme também ganhador do Prêmio da Imprensa Globo de Ouro, como melhor filme estrangeiro. O terapeuta receptivo ao desejo da paciente, parece interceptado pelo próprio desejo, sendo posteriormente perdoado pela história e servindo de exemplo aos ideais do “curador ferido”. Creio que o desempenho espontâneo do papel profissional, integra-se ao role creating. Tornam-se ativos papéis jogados com reflexão, arte, desejo, contensão e sensibilidade. Terapeuta e paciente reagem ao desejo, mas não escapam às suas realidades subjetivas, nem imediatas. Jung viveu seu próprio drama no mais recôndido cantinho da alma, sem medo, e conseguiu resultados brilhantes. Transgrediu o academicismo? Sim. Mas os resultados não foram danosos, muito pelo contrário, o mundo ganhou uma excelente profissional que seguiu carreira na área de serviço social e ajudou muita gente através do aprendizado de cura.
 Para finalizar, gostaria de deixar aqui os comentários de um amigo meu, sem formação em psicodrama, mas grande conhecedor do método psicoterápico como paciente. Comentário enviado por Carlos Augusto Carvalho, em 20/03/2011 1: 49:02:
A maioria das pessoas vai ao cinema em busca de diversão, pois cinema é um entretenimento, principalmente o americano que sabe fazer grana em tudo em que põe a mão. O cinema Europeu, e mais recentemente o asiático, também chamado de cinema de autor, procura retratar nas telas os dramas pessoais, aspectos subjetivos do ser humano, que somente os iniciados nos mistérios insondáveis do inconsciente, como você, sabe observar. Sua interpretação do filme é perfeita e profunda. Acrescento que me interessou muito na película a relação entre o George e o Lionel, que com muita argúcia e perspicácia, percebeu que a gagueira do rei não se curava apenas com exercícios para melhorar a articulação da fala. Ia mais além. Não sei se lembra, mas Lionel perguntou ao rei desde quando tinha o problema. Este respondeu que até os 5 anos de idade falava normalmente. Então ele disse: "você tem voz", e percebeu que o cerne da questão estava na relação com o rei pai, no medo de não corresponder à expectativa do monarca ao mandado que se impusesse ao seu inconsciente. Então pegou o fio da meada para desatar os nós. Em cada filme que vejo, procuro tentar averiguar aquilo que escapa ao espectador comum, que vai ao cinema apenas para se divertir e se esbaldar na pipoca e no refrigerante. Mas sabe que é muito bom ir ao cinema apenas com essa expectativa?”.  
Pois então, fomos ao cinema em busca de diversão e saímos de lá com mil perguntas. Meu objetivo ao compartilhar minhas reflexões com vocês foi garimpá-las, para “desatar os nós”, como refere o comentarista do meu Blog. Então concluindo meus questionamentos, creio que os verdadeiros MESTRES são realmente aqueles que aprendem e vivem seus processos, retirando as vendas dos olhos para que o paciente também o faça. Se esconder em defesas? Já não bastam as do paciente?

saladebatepapo psicodrama- Março de 2011

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