A CRIAÇÃO DE CENAS ATRAVÉS DA FORMA E A EMERGÊNCIA DE CONTEÚDOS


Trabalho apresentado no  II ENCONTRO REGIONAL DE PSICODRAMA NORTE E NORDESTE - O PSICODRAMA E SUAS CENAS. Organizado pela ASBAP - Associação Bahiana de Psicodrama e Psicoterapia de Grupo. Centro de Convenções. Salvador - BA: 1994

Neste Evento, apresentei meu 1°Escrito Psicodramático como aluna do último ano de Formação em Psicodrama, refletindo sobre a minha experiência clínica com a Técnica de Construção de Imagens. Neste época atendia dois Grupos de Psicoterapia Psicodramática pela Clínica Socializada da ASBAP, a título de Estágio Curricular obrigatório. Um Grupo de Adultos, tendo como Ego-Auxiliar a colega Sônia Pinto; e um Grupo de Jovens composto por alunas do Curso de Psicologia da UFBA, tendo como Ego-Auxiliar a colega Suzana Avena. Além desses grupos, realizava também atendimentos individuais, tanto na Clínica Socializada quanto em consultório particular, onde iniciei minha prática clínica na linha reichiana bioenergética e psicanalítica, a partir de 1986.

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A Criação de Cenas através da Forma e a Emergência de Conteúdos
Por Leonídia Alfredo Guimarães

Este escrito, A criação de cenas através da forma e a emergência de conteúdosnasceu de duas principais vertentes: (1) da dificuldade que senti ao trabalhar com o psicodrama, dentro do enquadre proposto por Rojas-Bermúdez, o que me levou à pesquisa teórica sobre o tema Forma e Conteúdo em Psicodrama, da sua autoria; (2) por ter considerado interessante experimentar o trabalho terapêutico com imagens, verificar os seus efeitos e expor a minha experiência clínica desse aprendizado, o que acredito possa servir de contribuição para aqueles que estão começando a trabalhar com o psicodrama clínico, ou ainda, para aqueles que desejem repensar e ampliar a sua prática dentro desse foco.

Para melhor compreender o método psicodramático de Rojas-Bermúdez, psicodramatista e psiquiatra de origem colombiana, radicado por muitos anos na Argentina e criador da teoria do Núcleo do Eu - Esquema de papéis e da técnica de construção de imagens como intervenção terapêutica, é importante, acredito eu, absorver as principais diferenças entre o seu enquadre técnico-formal e o método Moreniano, basicamente centrado na técnica de dramatização de papéis e no teatro espontâneo. 

Ao longo do seu trabalho clínico dentro do enquadre do Psicodrama, Bermúdez desenvolveu uma metodologia de trabalho própria acrescentando impontantes transformações  teóricas e de estilo e técnica ao enquadre original definido por J.L.Moreno. Creio que a principal diferença técnica entre os dois métodos seja exatamente a inclusão do trabalho com as imagens como procedimento sistemático estabelecido na Técnica de Construção de Imagens, não apenas como aquecimento específico, mas também como desaquecimento de estados emocionais ampliados que muitas vezes dificultam a elaboração simbólica e a objetivação do conflitos. 

Outra particularidade se refere à formulação de hipóteses terapêuticas antes de realizarmos uma dramatização, visando o direcionamento e o desenvolvimento da dramatização com a inclusão de egos-auxiliares nos papéis requeridos, realizada durante a etapa de investigação verbal ou durante os procedimentos da técnica de construção de imagens. 

Quanto ao direcionamento técnico da sessão, sabemos que J.L.Moreno colocou como núcleo central do psicodrama o desempenho de papéis e o consequente valor terapêutico dessa vivência, visando alcançar a catarse de integração através do teatro terapêutico e espontâneo engendrado no cenário. 

Rojas-Bermúdez ultrapassou este modelo, valorizando um tipo de produção diferente que parte do trabalho com a forma e os conteúdos trazido pelas imagens mentais, transformadas em imagens psicodramáticas, afirmando que buscava com isso "alcançar mudanças mais duráveis em seus pacientes, usando suas capacidades compreensivo- intelectuais". Dessa forma, no meu entender, Bermúdez atribui um novo sentido à etapa de dramatização. 

Em linhas gerais, são essas as principais diferenças de estilo e técnica entre os enquadres de Moreno e Bermúdez. Falarei agora da minha própria experiência com o método de construção de imagens, ainda como psicodramatista estagiária, interessada na utilização da técnica de construção de imagens. Devo dizer, inclusive, que passei a considerar essa técnica como eixo central do meu trabalho clínico, na condição de meio possível para a construção de cenas, por onde circulam muitos conteúdos. Vem daí o título deste trabalho: A criação de cenas através da forma e a emergência de conteúdos.

Ao iniciar a minha prática como psicodramatista estagiária, na ASBAP (1993/94), sentia certa
dificuldades em adaptar-me ao método psicodramático proposto por Rojas-Bermúdez, em
sua íntegra. A dificuldade provinha, creio eu, de uma tendência mais arraigada no trabalho verbal e do hábito anteriormente incorporado da psicanálise, de escuta e investigação verbal do material trazido para a sessão. 
O processo de conceber alguma hipótese de direcionamento para a produção de Cenas , através da escuta é muito lento e este aspecto me serviu de motivo para a experimentação do modelo proposto.

 Familiarizando-me aos poucos com a metodologia de imagens , pude perceber que, de fato, aquecer o protagonista para a produção de uma Imagem era realmente mais favorável à obtenção de conteúdos e, da mesma forma, para um melhor desenvolvimento da sessão psicodramática, em suas etapas de aquecimento, dramatização e comentários ou análise. 

Na maioria das vezes, criava-se a partir daí uma cena a ser trabalhada por meio das imagens, independentemente da dramatização de papéis, favorecendo, também, a construção de hipóteses terapêuticas para possíveis dramatizações, contando com o envolvimento do grupo e do aquecimento máximo do protagonista para o desempenho de papéis desde a apresentação dos personagens destacados na imagem. Mesmo que os personagens surgidos fossem simples fantasias ou elementos subjetivos como as emoções básicas de medo, ansiedade, raiva, agressividade, impulsos incontroláveis, etc. 

Esse aquecimento específico mediante a construção de imagens e o  consequente relaxamento de campo proporcionado pelo contexto psicodramático do "como se" pareceu-me essencial, compensando de alguma forma, o trabalho despendido junto ao paciente para a produção de uma Imagem, uma vez que esse tipo de linguagem – falar através de uma forma ou alegoria, não é muito comum na nossa cultura. E a princípio o pacientes estranha. Basta contudo colocá-lo em ação para o desempenho da tarefa que as imagens vão surgindo na mente e sendo concretizadas no cenário, muitas vezes sem que o paciente tenha uma ideia clara do que vai construir exatamente, ou de como vai representar o que sente.

A utilização sistemática desse método de trabalho, me permitiu visualizar as cenas expostas, ao invés de ouvi-las e repeti-las no Cenário, o que acredito que tenha sido bom também para os pacientes, fazendo-os voltar o seu olhar para si mesmos, ao tempo em que depois, podiam visualizar  e interpretar o seu drama ao vivenciar cada parte da imagem. Pude perceber, também, que o método permite a evolução, ou não, das formas criadas no Cenário, para outros desdobramentos da imagem ou passagem para uma dramatização de personagens, desenvolvendo-se todo esse processo de maneira fluída e enriquecedora para o desempenho de papéis, além de pontuar as intervenções necessárias de uma forma conjunta.

Segundo Bermúdez, a Imagem traz o aspecto básico conflitante, registrado e identificado na Imagem, o qual é espontaneamente compreendido pelo próprio protagonista. Este fato foi comprovado e possibilita ao psicodramatista o prosseguimento do trabalho terapêutico de formas distintas, muitas vezes sem passar pela produção de cenas com a representação de papéis (método moreniano), uma vez que a própria Imagem pode ser capaz de possibilitar os insights e a catarse de integração, objetivada pelo psicodrama. Quando isso acontece, a Imagem fala por si mesma, a compreensão é imediata e fortemente sentida pelo paciente como a sua verdade subjetiva.

Facilita-se a compreensão interna, fazendo-se uma leitura das formas em cena, mediante o
envolvimento do protagonista dentro da imagem ou, como orienta Bermúdez, passa-se a “investigar as
relações existentes entre os seus elementos expressivos e a verificar as inter-relações
existentes entre cada parte e contra-parte da Imagem” - procedimento inicial após a construção da imagem.

 Através dessa metodologia de construção e trabalho com imagens na psicoterapia, normalmente o protagonista chega à auto-compreensão, à auto-avaliação da imagem e encontra novas saídas para a situação trabalhada. Dentro da minha experiência com a técnica de construção de imagens, houve ocasiões em que tornou-se desnecessário, inclusive, passar o protagonista para a Imagem e pedir-lhe o Solilóquio. Pois ao fazê-lo tomar distância da Imagem, visualizá-la e explicar seus conteúdos (espelhamento), já  obtinha-se o  insight do conflito, tornando-se desnecessário o desdobramento técnico-metodológico do procedimento com os Solílóquios, ou possíveis inversões para vivência em outras partes da imagem. 

Nessas ocasiões, a qualidade da Imagem era muito boa. Notamos que certos pacientes conseguem uma auto-compreensão, bastante significativa, logo após o processo de produção da
Imagem e o distanciamento da mesma (espelhamento) com a leitura das formas construídas; ou, no momento seguinte, ao assumir o lugar de cada parte e contra-parte da Imagem para realizar o Solilóquio, etapa do procedimento considerada por alguns como um “assumir e inverter papéis”.  

Entretanto, é bom lembrar que em se tratando de imagens a terminologia usada por Bermúdez não é de  “unidades de conduta” ou desempenho de papéis. Bermúdez faz referência às "partes e contra-partes" da imagem que são representadas com gestos, distanciamentos, aproximações e posturas corporais, que compõem a representação plástica de uma situação ou determinado estado de ânimo que constitui a imagem e caracteriza a percepção simbólica de um conflito. Ou seja, a Imagem reflete o drama metaforicamente, estrutura conteúdos, decompõe elementos de forma estática e fala em sua própria linguagem não-verbal. Entretanto, a imagem pode levar ao jogo de papéis. Mas se isto acontecer, tecnicamente estaremos passando à fase clássica de dramatização ou jogo de papéis, retirados a partir da imagem construída (parágrafo atualizado).

A utilização desse método nem sempre é uma tarefa fácil. Requer muito tempo de prática, determinação e paciência por parte do terapeuta. Principalmente quando estamos lidando com pacientes muito bloqueados nos seus afetos, com poucos recursos expressivos e muitas dificuldades de simbolização. 

Percebi, no entanto, que mesmo para essas pessoas, o exercício continuado de produzir Imagens, pode servir-lhes de estímulo ao desenvolvimento dos seus canais cenestésico e visual, permitindo-lhes de alguma forma ampliar o seu contato com o seu mundo interno de sensações, sentimentos e fantasias, ajudando-os a melhorar também a qualidade dramática das suas Imagens e a liberar o seu potencial criativo para o desempenho de papéis. 

Pude observar, também, que os pacientes dos grupos trabalhados (Asbap, 1993/94) cuja fórmula estrutural não apresentavam problemas relativos às áreas corpo - mente geralmente conseguiam uma compreensão significativa da situação trabalhada, logo após o processo de construção da imagem, ou no momento seguinte , ao assumir cada parte e contra-parte para realizar o Solilóquio (também compreendido como inversão de papéis).

Ao contrário, pacientes que possuem muitas dificuldades nessas áreas (Corpo e Mente), mostravam-se menos produtivos ao realizar o trabalho com Imagens, fazendo-nos passar à etapa de dramatização de papéis, em busca de um canal de acesso que lhe fosse  mais favorável. 

Contudo, a forma instantânea e natural de compreensão de fatos atuais ou do passado, a perspectiva do trabalho incluindo corpo-palavra-ação, a junção entre realidade-fantasia-imaginação, bem como a clara delimitação entre espaço-forma-conteúdo, são alguns dos aspectos que me fizeram adotar o método de construção de imagens de Rojas-Bermúdez.

A utilização dessa método, conforme falei anteriormente, nem sempre é tarefa fácil, pois exige muita espontaneidade-criatividade do paciente e determinação e paciência  por parte do terapeuta. Pprincipalmente quando estamos trabalhando com pessoas muito bloqueadas nos seus afetos e forças expressivas ou com muita dificuldade de abstração simbólica. 

Acredito que essas pessoas usem preferencialmente os canais de comunicação mais verbais e auditivos, adaptando-se melhor a métodos que utilizem a linguagem verbal no receber, e decodificar mensagens, o que em muito dificulta a produção de imagens. No entanto, mesmo com essas pessoas, o exercício contínuo de construir imagens pode servir de estímulo para o desenvolvimento dos seus canais cenestésico e visual, permitindo-lhes de alguma forma ampliar o seu contato com o seu mundo interno de sensações e fantasias e, dessa maneira, ajudá-las a liberar o seu potencial criativo.

Os pacientes com boa capacidade de elaboração e abstração simbólica, adequam-se maravilhosamente à técnica, alcançando insights imediatos, a exemplo de uma paciente que passarei a citar, resumidamente: Em uma sessão de psicodrama grupal, uma paciente queixava-se da sua relação com um filho púbere, com o qual vinha tendo um comportamento muito irritado e impulsivo. Seu maior receio era que esse filho passasse a se sentir como "um peso" e "um estorvo" em sua vida. Na imagem, colocou-se amparando o filho, com o corpo inclinado para baixo, da cintura para cima. Ao colocar-se na posição do filho e tentar fazer o solilóquio, a paciente saiu da imagem, sentou-se encostada na parede e entrou em pranto profundo. Ao recuperar-se e conseguir falar, disse haver compreendido que havia colocado na imagem o ex-marido, não o filho - o filho não tinha nada a ver com o que estava acontecendo. O "estorvo" da vida dela era o ex-marido que sofria de alcoolismo, com quem não conseguiu mais conviver. Foi uma sessão muito significativa dentro do seu processo terapêutico e muito me ensinou sobre a eficácia do trabalho terapêutico com imagens.



Escrito Psicodramático apresentado no II Encontro Regional Norte/Nordeste
Realizado em Salvador-Bahia, 1994 e Publicado no Jornal EM CENA da FEBRAP-Ano15-No.1/ 1998


Referência Bibliográfica: Guimarães, A. L. (1994) A Criação de Cenas através da Forma e a Emergência de Conteúdos. Cap.5. In Aspectos Teóricos e Filosóficos do Psicodrama.  Newsletter. FEBRAP: 2000. Disponível em: 
https://leonidialfredoguimaraes.blogspot.com/2012/06/criacao-de-cenas-atraves-da-forma-e.html?spref=fb&m=1







 

Comentários

Olá Leonídia!
Desejo um ótimo Congresso para você, pena eu não poder estar junto este ano.

abraço
Oi Andrea!
Apenas hj vi sua postagem. Os congressos foram ótimos. Também adorei seu Blog! Obrigada pelo retorno, me incentivou a atualizar algumas coisas. Grande beijo!
Leo
Legal vc ter conseguido postar seu comentário Andrea, vc usou algum truque especial para isso? Pergunto porque geralmente as pessoas me dizem não ter conseguido postar nada e eu fico sem saber o motivo...
Outro abraço,
Leonídia

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