PSICODRAMAS PUBLICOS E LIMITES ÉTICOS

 

Texto retirado da Revista Campo Grupal
Data de Publicação: Ano 2000
Psicodramas Públicos Limites Éticos



 

" Mais importante do que a ciência é o seu resultado,

Uma resposta provoca uma centena de perguntas".

J.L.Moreno



Leonídia A. Guimarães
Atualização de email: leoguimas05@gmail.com



Hoje, mais distantes das dificuldades inerentes ao pioneirismo moreniano, destacamos a década de 1914 - 1924 como o ancoradouro da grande criação moreniana, onde foram plantadas as primeiras sementes do Psicodrama, na mesma Viena de Freud e em plena efervescência da psicanálise, contrapondo-o ao método psicanalítico de divã. Esta foi uma época em que Moreno se sentia tão iluminado por idéias e ideais humanitários de cura , que chegou a identificar-se com o Deus cósmico.

Esta sua realidade mística parece ter sido transmutada, logo após a sua radicação nos Estados Unidos(1925), como cidadão americano, criador da Sociometria, Psicoterapia de Grupo e Psicodrama.

Um olhar à década de 1930, mostra-nos um período de grandes avanços científicos essenciais à construção do Psicodrama, tal como o vimos na atualidade, com todas as suas ramificações socionômicas em plena evolução.

Do início do século XX até o começo do nosso século, várias adaptações foram ou ainda estão sendo feitas, com o propósito de demarcar os diversos campos de aplicação do psicodrama e seus respectivos enquadres metodológicos. Partindo do Teatro da Espontaneidade para o Teatro Terapêutico, chegamos à inclusão de diversas linhas teóricas que foram influenciando o surgimento de diferentes abordagens e tendências dentro do movimento psicodramático, em todas as suas especialidades e ramificações.

Deixou-nos Moreno, em 1974, com um vasto campo de trabalho, modelos e métodos psicodramáticos, tanto em consultórios particulares, onde praticamos a psicoterapia e o psicodrama bipessoal, individual e grupal, familiar ou de casal, quanto fora dos consultórios, em comunidades abertas ou fechadas, onde podemos possuir ou não um público específico, trabalhando com o Role-playing, Teatro Espontâneo, Sociodramas, Sociopsicodramas e Psicosociodramas, em distintas propostas e vertentes.

É sempre oportuno, então, lembrar que lidamos com várias formas de trabalho e que em cada uma delas encontra-se embutido um contrato psicodramático específico. O contrato direto, feito com o cliente, com o grupo ou com ambos, é o mais simples e tradicional; não inclui intermediários e parece ser o menos sujeito a distorções do vínculo. Trata-se na maioria das vezes de um contrato psicoterapêutico sistemático, submetido a determinada periodicidade e temporalidade, embora o seu término normalmente fique em aberto, como em qualquer contrato psicoterápico. O contrato com famílias e casais, segue em geral um esquema fixado em determinado número de sessões, desfazendo-se o vínculo em curto espaço de tempo. Um outro tipo de contrato é o institucional; aquele que inclui um terceiro como cliente contratante ou intermediário, estabelecido junto a escolas, empresas, instituições públicas, organizações não-governamentais, onde existe alguma flexibilidade quanto a objetivos, tempo, espaço, caracterização da clientela e diagnóstico da situação a ser focada, passos que correspondem ao planejamento da ação proposta.

Nesses múltiplos palcos, onde atuamos como psicoterapeuta ou psicólogo clínico organizacional e educacional, o psicodrama vem se comportando de forma cada vez mais satisfatória, seja pela eficácia instantânea do seu método, seja pelas múltiplas características e possibilidades criativas que são dadas a sua clientela, ou pela possibilidade de realizar uma ação planejada, conjunta e refletida, contando com determinado espaço e tempo, para intervir sobre a realidade a ser abordada.



Eventos Públicos e Limites Éticos

Pretendemos nos concentrar aqui, na discussão de alguns aspectos referentes à prática do psicodrama em sessões abertas ao público, realizadas em sessão única, conforme foi praticado no início do século passado por Moreno, sob a denominação de Psicodrama Público, cuja abordagem, difere em muito dos parâmetros atuais, anteriormente comentados.

Os eventos públicos conservam a proposta terapêutica do psicodrama e propõe-se a realizar um ato, com princípio, meio e fim, não importando-se em priorizar alguns aspectos confidenciais, principalmente no que se refere ao foco do trabalho, havendo possibilidades de realizar-se um ato terapêutico de caráter clínico, educacional, organizacional ou teatral, conforme o contratado .

Costumamos entender esta prática como um recurso técnico utilizado por Moreno e nos, seus seguidores, para demonstrações científicas, formativas ou populares do método psicodramático. Foi através da realização desses tipos de intervenções psicodramáticas, que Moreno conseguiu estruturar alguns alicerces básicos da sua teoria. Pensamos que vem daí toda a importância e significado atribuído ao Psicodrama Público, até os nossos tempos, constando o mesmo, inclusive, como um requisito básico para obtenção do título de psicodramatista.

Dessa forma, salvo raras preciosas exceções, o Psicodrama Público passou a ocupar, na nossa opinião, um lugar semelhante ao do teste de espontaneidade para o desempenho de papéis pouco estruturados, a serem jogados em situações ainda menos estruturadas, e para as quais seriam talvez possíveis "uma centena de respostas ", tanto da platéia quanto da Unidade Funcional ( Diretor e Ego-Auxiliar).

Vem sendo muito praticado em Escolas de Psicodrama, normalmente com objetivos divulgacionais ou para a obtenção de titulação e formação complementar, mas ainda é muito pouco estudado e aproveitado para fins de pesquisa e construção teórica, havendo pouca bibliografia a este respeito.

Sua prática em consultório particular é quase inexistente, pelo que se tem notícia, havendo alguns grupos de psicodramatistas com formação teatral, interessados em praticar o psicodrama fora dos consultórios, inclusive nas ruas e praças públicas, bem ao estilo do ideal moreniano.

Antes de nos aprofundarmos no modelo público de psicodrama que estamos a tratar, gostaríamos de realçar que enquanto ação comunitária pública, compartilhamos que este tipo de trabalho, parece conter um grande potencial a ser explorado, estudado e pesquisado, a exemplo do que aconteceu a 21 de março de 2001, na cidade de São Paulo. Ao que parece, sob este foco sócio-político e cultural, o "Psicodrama Público" mostra-se ícone no trato de questões mais gerais de interesse coletivo, sejam econômicas, sociais, culturais ou religiosas, assemelhando-se aos trabalhos realizados por Moreno, com o objetivo de minimizar os efeitos danosos deixados no povo, por ocasião das duas grandes guerras mundiais. Certamente, não é sobre este tipo de evento, também denominado por Moreno de "Psicodrama Público", que nos debruçamos aqui. Entendemos este tipo de evento, cujo foco esta centrado em aspectos sociais e políticos, como pertencendo à categoria de Sociodrama Público, conforme o entendimento atual de vários autores psicodramatistas.

Nosso tema decorreu de um estudo reflexivo em torno das nossas próprias experiências, presenciais e profissionais, com psicodramas públicos, principalmente nos últimos dez anos, em que temos nos dedicando ao estudo e à prática psicodramática clínica. Consideramos salutar, nesta virada de século, realizar algumas articulações teóricas e provocar novas reflexões a respeito das nossas práticas psicodramáticas públicas, que via de regra, não levam em consideração os efeitos do dia seguinte na platéia e no protagonista. Mesmo por que não temos normalmente acesso a estas informações, salvo se formos procurados posteriormente por algum participante ou representantes dos mesmos . Vez por outra, tomamos conhecimento de que uma forte mobilização coletiva sucedeu a determinada vivência, fazendo com que o grupo ou algum participante, em particular, assumisse um comportamento diametralmente oposto ao assumido usualmente .

Neste sentido, uma das questões iniciais que questionamos, referiu-se ao uso do Psicodrama em contextos pouco caracterizados, onde por exemplo, o auditório não estivesse interessado em sofrer e beneficiar-se dos seus efeitos terapêuticos, ou ainda, quando não estivesse devidamente comprometido e consciente quanto à sua função básica de apoio, centrada no aqui e agora compartilhado, e o comportamento grupal não viesse a favorecer o seu papel de agente terapêutico de cura, transformação pessoal e social (5).

No vértice deste questionamento, inserimos como questão básica a ética em relação ao cliente, em relação ao psicodramatista, ao protagonista e ao grupo. Ponderamos que mesmo autorizados pelo grupo a prosseguir as propostas que se apresentem, seria muito delicado tocar em certos aspectos pessoais num primeiro e único encontro , sem perder de vista que ao entrar em contato com as emoções das pessoas, estaríamos ativando algo mais além da memória grupal coletiva. Entrariam em cena, todas as memórias individuais conscientes e inconscientes do grupo, seus comportamentos, fantasias, desejos, sentimentos e vivências particulares, experimentados ao longo de toda uma existência, fato extremamente mobilizador em se tratando de um pequeno grupo, onde questões pessoais não-resolvidos ou traumatizantes, situações e circunstâncias, nem sempre são controláveis, correndo-se o risco de serem identificáveis.

Caberia, não apenas refletir a respeito do conteúdo que pudesse ou não ser levado ao palco, mas sobretudo exercer uma postura de maior controle, talvez participando mais ativamente da preparação das cenas a serem dramatizadas, ocasião onde poderíamos tomar conhecimento de dados eventualmente omitido ou encoberto. Alguns deles poderiam apenas continuar a fazer parte da corrente grupal co-consciente, comportando-se como desejo ou fantasia, outros poderiam ser eleitos como possibilidades dramáticas. O conhecimento destes dados, por parte do psicodramatista, serviria de apoio e respaldo integrativo do protagonista, eximindo-o do sentimento de exposição, vergonha, preconceito, inadequação, exclusão e isolamento.

Seria elementar, também, não perder de vista que geralmente são os personagens ausentes à sessão, que acabam compondo o mundo psicodramático (8,p.113). E este mundo é tão particular, essencialmente individual e tão potencialmente capaz de insinuar o drama coletivo a ser tratado, quanto o é a corrente do co-inconsciente grupal.

Por isto, na nossa forma de pensar o psicodrama, as realidades subjetivas impõem vários limites à utilização do modelo psicodramático em sessão aberta, não só pela descontinuidade desta abordagem, mas principalmente pelo fato de ser éticamente incompatível ao propósito terapêutico original do Psicodrama, basicamente criado sob a égide da liberdade, responsabilidade e espontaneidade criadora, requisitos sem os quais não conseguimos vinculá-lo ao tratamento das emoções e dos conflitos humanos e sociais. Para nós, uma conduta excessivamente dirigida e controladora, da parte do terapeuta, descaracteriza inteiramente a nossa proposta.

Um outro aspecto da referida incompatibilidade, refere-se aos distúrbios comportamentais e vinculares que podem surgir no contexto da sessão ou na realidade objetiva imediata, de onde podem emergir ou não, a ocorrência de choques emocionais desencadeados por alguma cena dramatizada em sessão aberta.

Tais choques são semelhantes aos choques psicodramáticos (9), mas diferenciam-se pelo fato de não trazerem nenhum benefício terapêutico imediato ao paciente, provocando apenas complicações e constrangimentos sociais a serem tratados posteriormente. O choque psicodramático clássico, além de ser programado, é basicamente terapêutico em seus efeitos imediatos. Além disto, a grande desvantagem trazida pelos choques emocionais em sessão aberta seria o fato de não poderem ser tratados in locu, exatamente pelo fato de estarmos em ambiente aberto e descaracterizado, sob pena de sermos acusados de expor o paciente e ultrapassar o limite contratado.

Em decorrência de tal equívoco ou eventual descontrole quanto à emergência de conteúdos traumáticos em sessões abertas, seria previsível, também, a ocorrência de efeitos negativos , mais ou menos comprometedores, em relação : 1) ao psicodramatista, na condição de diretor de cena e responsável pelo manejo técnico da sessão e do grupo; 2) ao psicodrama enquanto prática psicológica, formalmente identificada como meio de garantir o bem estar emocional das pessoas - mesmo levando-se em conta que para chegar a soluções saudáveis mister se faz passar pelo sofrimento. A questão maior, ao que parece, estaria vinculada à proteção social da integridade e dignidade humanas, conceitos intrinsecamente subjetivos e particulares, quando trabalhamos com grupos humanos.

Por isto, em psicodramas públicos, no caso de alguma técnica psicodramática vir a desencadear em algum membro do grupo, algum desconforto ou sensação de exposição, torna-se bastante difícil contornar esses efeitos, sem um maior aprofundamento da questão mobilizada. Moreno dizia que, após alguma cena de caráter mais íntimo ou pessoal, onde o protagonista normalmente "se esquece" do grupo ou auditório, tem início uma etapa mais difícil para o protagonista, que precisará receber apoio e ressonâncias do grupo até conseguir minimizar o sentimento de ter ficado "sozinho" com a sua dor, durante a cena: "... o processo de clarificação não se dá sem conflitos; não são raras a hostilidade e as críticas agudas, principalmente contra o terapeuta" ( 8,p.113).

Esta é uma questão de limite ético terapêutico de vital importância.

Jonathan Moreno ( 2, p.180-183) sugere como alternativa para a preservação ética dos eventos públicos, a realização apenas de sociodramas , cujo estilo de montagem em setting aberto, pudesse reduzir as ambigüidades relativas à natureza do psicodrama (o grifo é nosso), especialmente quanto ao fato do psicodrama poder ser caracterizado ora como terapia, ora como teatro . A finalidade segundo o autor, seria manter a situação descaracterizada para que assim se pudesse obter uma mistura de terapia social, entretenimento e teatro, que fosse éticamente segura ( Idem, p.147).

No que se refere ao psicodrama em sessão aberta, o autor nos diz que poderá ocorrer uma formação reativa após a sessão, por parte de algum membro do grupo que se sentiu "deixado pendente" ou "precisando de um útero" ou "carente de atenção", "desprestigiado" ou "preterido", exatamente depois que terminou a sessão e começou a "ver o filme" . Cita, inclusive, um caso de formação reativa após a ocorrência de um "choque psicodramático", onde um paciente foi trabalhar a sua raiva do terapeuta numa sessão aberta de psicodrama, na ausência do terapeuta ..."relatando o que parecia ser um trabalho mal feito" ( Ibdem, p.144).

Ocorre que, mesmo deixando-se de lado os compromissos ideológicos com a filosofia do psicodrama, mantendo-se o grupo em estado de desaquecimento pessoal, esta manobra seria apenas superficial, pois embora o trabalho pudesse transcorrer mantendo-se o tema dos papéis sociais em foco constante, ou o tema do grupo na superfície, cada ser individual estaria presente na corrente do co-inconsciente grupal, com todas as suas questões inacabadas, confusas, conflituosas e pessoais. Tudo isto faria parte da cena, mesmo que em estado subliminar, revelando-se no desempenho de papéis. Assim sendo, até que ponto o material mais pessoal poderia permanecer intocado ou encoberto, no Sociodrama dirigido ao pequeno grupo social ?

O psicodramatista poderia, indevidamente, ser chamado a protagonizar a cena do grupo em suas escolhas e aceitar o jogo, fazendo uso de alguma manobra de dispersão de conteúdos, objetivando com isto talvez, suspender a ação espontânea grupal ou do protagonista, conduzindo-os a uma situação de controle. Conforme refere Saad (13, p.141), parece-nos que neste caso, o psicodramatista estaria sendo filosoficamente antiético em relação ao compromisso ideológico de ir em busca da catarse de integração psicodramática. Estaria, inclusive, indo de encontro a proposta existencial fenomenológica de Moreno, i.e., de seguir o paciente e acolher o fenômeno puro em status nascendi (9).

Estas reflexões nos levaram a outros questionamentos, que poderiam ser articulados a alguns supostos teóricos :

Será que o hábito de exacerbar o foco central do trabalho na arte teatral ou mesmo no pequeno grupo social, poderia nos levar à desvalorização da perspectiva existencialista moreniana, no que se refere a importância delegada ao indivíduo enquanto porta-voz do grupo ?

Mesmo em caso negativo, até que ponto poderíamos sobrepor o grupo ao indivíduo, se em última instância é ele o porta-voz do grupo ?

Em grupos não - estruturados seria mais comum haver uma distorção das noções de grupo social e comunitário, podendo levar a relação grupal a uma espécie de anonimato corrosivo quanto às responsabilidades pessoais, individuais e grupais de cada componente do grupo em relação ao outro (10). Por isto não nos parece possível neutralizar o fato de que o indivíduo realiza ações coletivas em grupo que não assumiria individualmente. Isto reforça a noção que é dada ao protagonista enquanto emergente do grupo, porta-voz das suas aflições.

Normalmente, quando se trabalha com grupos abertos, casualmente formados, levamos em conta que os seus membros estariam mais expostos à distorção dos seus vínculos internos e externos (4,6,7,10). Isto poderia levar ao que normalmente chamamos de contaminação do nosso campo de trabalho, pelo excesso de competitividade e desconfiança, diminuindo a nossa eficácia e a eficácia grupal, em sessões de psicodramas públicos, decorrendo daí uma baixa expectativa em relação aos seus efeitos terapêuticos.

Essas considerações teóricas nos direcionam a olhar os limites éticos das sessões públicas, de forma favorável ao avanço do Psicodrama, levando-nos ao seu pleno uso , aperfeiçoamento e reconhecimento no meio psicoterápico, social e científico.

Todos esses aspectos reunidos, e outros que trataremos adiante, apontam para outras importantes articulações teóricas ( Ruesch, 1964), que exigem do psicodramatista uma postura ética muito flexível e ao mesmo tempo firme, no sentido de nunca abrir mão da necessidade de avaliar qual seria a capacidade do protagonista e do grupo, de suportar o contato direto : 1) com o conteúdo emergido ou que poderia vir a emergir durante a sessão; 2) com o psicodrama ou sociodrama público, realçando o fato de precisarmos estar abertos a refazer o planejamento proposto para a sessão aberta; 3) com as produções do inconsciente e co-inconsciente coletivo .

Seria necessário, para isto, que cada elemento do grupo pudesse avaliar, par e passo, as suas reais possibilidades de entrar em contato direto com o grupo, com o psicodrama, com o psicodramatista e com suas situações não resolvidas, que pudessem vir a emergir na sessão aberta.

Estas exigências, não poderiam ser vistas apenas como responsabilidades do psicodramatista, parecendo muito rigorosas para quem entra ou quer entrar em cena, num primeiro encontro, em campo aberto e em contexto criativo, não ? Contudo, em tese seria a maneira mais segura de abordagem psicológica, seja ela grupal ou individual. Quando se esta trabalhando processualmente, parte desta responsabilidade terapêutica é compartilhada com os pacientes e com o grupo terapêutico .

Infelizmente, no caso de trabalhos públicos, além de termos de levar em conta a inadequação do contexto, o mais provável é não termos uma idéia precisa acerca de qual seria a capacidade do grupo ou do protagonista para lidar com material pessoal conflitivo, nem durante, nem após a sessão aberta de psicodrama. Essas são as variáveis mais nebulosas quando trabalhamos com sessão única e aberta. Nelas podemos encenar situações para as quais precisamos estar tecnicamente muito bem preparados, na melhor das hipóteses, para saber lidar com todas as possibilidades de resistências sociais: emocionais, políticas, religiosas, socioculturais... somando-se a estas às possibilidades de reações negativas provocadas pela tomada de consciência, ainda não processada.

Podemos também concluir que a emergência de material com forte carga afetiva não processada, ao aflorar durante as dramatizações, podem ultrapassar o timing do grupo e assustar o protagonista, podendo servir de barreira transferencial para o enfraquecimento da tele grupal e consequentemente, suspender o trabalho antes de obter-se algum insight da situação e objetivação do conteúdo.

Nesses casos, seria interessante deixar claro para o grupo, que a representação de papéis psicodramáticos em determinado momento, fariam parte do próprio inconsciente coletivo e não de alguém ou algum participante em particular. Este seria, ao mesmo tempo, um bom manejo terapêutico, utilizado para proteção do protagonista, bem como uma maneira de evidenciar-se para o grupo que as suas ações individuais iriam permanecer dentro deste enfoque e seriam tomadas como parte do todo, evidenciando—se que, em verdade, o protagonista foi por ele influenciado.

Todos esses referenciais são muito importantes ao manejo técnico de psicodramas públicos, contudo, pode acontecer do evento tornar-se um fracasso, exatamente em função de todos esses cuidados. Uma primeira má impressão, refere-se a superficialidade ou à ausência de marcas significativas. Pode-se terminar a sessão sem haver conseguido conquistar nada além de um efeito ilusório de proximidade e complacência por parte do grupo . Contrariamente, o evento pode configurar-se num fracasso, exatamente por ter deixado o protagonista ou o grupo muito mobilizado, criativo e produtivo.

Mas será que poderia ser diferente ?

Sabemos que a emergência de uma situação traumática durante uma sessão aberta, poderia ser desencadeada a partir de qualquer estímulo relacionado ao protagonista, ao terapeuta, ao Ego-Auxiliar, ao grupo, ao momento de cada pessoa presente ou até mesmo a partir da técnica utilizada. São diversos, múltiplos e variados os estímulos presentes numa sessão de psicodrama (9). Por certo, a resolução desta situação seria um dos fatores preponderantes para avalizar os resultados do trabalho em seus efeitos. Por isto, os nossos objetivos mais amplos de fazer uma demonstração técnica eventual, divulgacional ou simplesmente uma "sessão única" de Psicodrama para trabalhar situações específicas , podem em si mesmo, pela própria diversidade e riqueza de settings, funcionar como um obstáculo, dificultando o processo contido nas realidades envolvidas e complicando ainda mais, a obtenção de uma discriminação mais objetiva do instrumento psicodramático.

Esta forma de pensar o psicodrama, transcende o fato de percebê-lo como um mero instrumento em busca de catarse. Independe do fato de rebelar-nos contra a utilização do nosso método de trabalho como um conjunto de técnicas isoladas, ou mesmo, preocupar-nos em estabelecer limites éticos a sua má utilização, simplesmente diferenciando o contexto terapêutico do aplicado, já que todo Psicodrama Público encerra, a principio, a proposta de um ato terapêutico.

Ser ou não mais permissivo quanto às inúmeras possibilidades de aplicação do psicodrama parece ser o âmago da questão refletida e, ao mesmo tempo, o aspecto do qual não se deseja abrir mão na atualidade.

Pensamos ser mais viável, por algum tempo, continuar aprofundando as nossas práticas psicodramáticas sem perder de vista o enriquecimento teórico-prático que nos oferece as diversas aplicabilidades do Psicodrama, e ir estabelecendo os limites éticos de cada técnica e modalidade de trabalho psicodramático.

Além disto e principalmente, entender o Psicodrama em sua natureza e essência, como um procedimento ativo e mobilizador de comportamentos, afetos e desafetos, conteúdos, emoções e aprendizagens, ajustando a sua aplicabilidade a esta realidade básica, sem deixar nenhuma brecha no que se refere ao contrato psicodramático com o grupo, com o indivíduo, com o cliente contratante ou mesmo com o acaso, já que parece ser no acaso que poderá caber, exatamente, alguma brecha.

Um dos aspectos a pensar seria, por exemplo, até que ponto os chamados choques psicodramáticos e os choques emocionais , que normalmente ocorrem em sessões públicas, e que a princípio parecem ser desencadeados em função do uso inadequado do instrumento , possam ser similares ao que aconteceu no início da psicanálise, mediante o uso indiscriminado do método do divã psicanalítico, em pacientes cuja grande tendência à dispersão de pensamento e associações de idéias, inviabilizava inteiramente o processo psicanalítico de divã, exatamente porque esta característica (a profusão de associação de idéias), que aparentemente parece ser tão favorável ao método de associações livres, contrapõe-se radicalmente à mesma; i.e., no método de associações livres, todas as associações giram em torno de uma única idéia (12, p. 184).

Quem sabe num futuro próximo possamos discernir melhor quais seriam, exatamente, os limites éticos e terapêuticos do psicodrama em todas as suas aplicabilidades e modus operandi. A dramatização de cenas abertas, em contexto público, por exemplo, poderia vir a ser contra-indicada para pacientes que costumam criar impacto estético nos grupos.





Conclusão

Moreno criou uma escola cujo modelo de ação se propõe a preservar tanto o pensar reflexivo quanto a possibilidade de expressão emocional contida em cada ação. Dessa maneira, pensamos que, seja qual for a direção dada ao trabalho público — aprofundar ou superficializar a ação dramática, o nível de conteúdos pessoais e coletivos será sempre o mesmo em qualquer proposta, diferindo apenas a qualidade de aprofundamento psicodramático permitido.

Conduzir uma proposta de psicodrama ou de sociodrama público, de forma mais diretiva, menos espontânea e criativa, talvez pudesse definir o limite ético do objetivo social proposto, i.e., o de preservar o protagonista e o psicodrama, enquanto técnica psicoterápica e sociodramática.

Contudo, não podemos deixar de considerar que, filosoficamente, o que definiria uma postura ética profissional e psicológica, seria acolher o conteúdo grupal ou individual emergente, tornando o fluxo criativo e espontâneo subjacente ao grupo como soberano e inviolável ao manejo particular do protagonista, o que deveria ser respeitado também pelo grupo.

Sabe-se, através de observações inerentes à psicologia social, que algum tipo de contaminação social e política, é comum aos agrupamentos humanos, sendo esta uma variável a ser considerada em eventos públicos . Levando-se isto em consideração, tanto a forma quanto o conteúdo emergido, poderiam nem sempre ser conscientemente sentido, expresso ou percebido como um patrimônio particular apenas do protagonista; caberia ao psicodramatista, então, tratá-lo como coletivo, perante o grupo, protegendo- os de possíveis manejos sociais ou atuações intragrupo.

Isto talvez imponha que o psicodrama público seja conformado à técnica de representação de papéis psicodramáticos, moldados às vissisitudes grupais, e utilizado em eventos públicos como recurso teatral provocador de ressonâncias afetivas , numa tentativa de evitar a ocorrência de anomalias e distorções mais grosseiras quanto aos objetivos terapêuticos, propostos por Moreno, durante e após uma vivência psicodramática. Dessa forma, a verdade encoberta de cada um, iria a partir de cada cena, recebendo ressonâncias e homogeneizando o ambiente grupal, a fim de resgatar virtualmente, a proposta terapêutica embutida em qualquer ato psicodramático, sem necessariamente expor o (s) protagonista(s).

Uma outra saída seria seguir o foco apontado por Kellermann, F.P. para a realização de Sociodramas. Este autor ( 3, p.60 ) elenca três modalidades de aplicação do sociodrama, dentro de uma abordagem integrativa, onde o foco social poderia ser posto: no trauma, realizando-se o Sociodrama da Crise; na desintegração, no caso do Sociodrama Político; ou no preconceito, para desenvolver o Sociodrama da Diversidade.

Todas essas variáveis, abrem espaço para que possamos repensar a respeito de alguns métodos e práticas psicodramáticas originais, que possam estar em estado de conserva cultural, ou que possam ter se tornado improdutiva, inadequada, ultrapassada ou até contraproducente ao avanço e à credibilidade do psicodrama como um método de psicoterapia.

Dentro desse pensar teórico, sob o prisma do valor psicológico de cada vivência psicodramática em seus efeitos espontâneos e criativos, expressa um pensar além das nossas possibilidades de controle técnico , onde tomamos a atividade processual como proposta da ação psicodramática. É aí que encontramos a diferença entre produzir saúde e fazer teatro; entre produzir papéis bem desenvolvidos e representar papéis identificáveis, mal desenvolvidos, pouco desenvolvidos ou desarmônicos.

Cada postura ética, teórica e prática, embutida neste pensar, define um modus operandi ao qual fomos conduzidos (11), articulando a proposta moreniana à representação psicodramática de papéis, ancorados ao trabalho com as imagens mentais, simbólicas e oníricas, que visam tanto quanto as dramatizações, a cura, o desenvolvimento da espontaneidade e criatividade e um bom desempenho de papéis existenciais, sociais e afetivos.

Em harmonia com o seu centro vital, o indivíduo poderá seguir uma ação social e existencial efetiva no mundo, tornando seus os objetivos centrais do psicodrama.

No intermédio dessa articulação incluímos a ética pessoal e filosófica do psicodramatista em sua prática pública, tanto em relação ao outro, quanto em relação ao grupo e à sociedade.

Em cada saber, cada pensar, cada sentir e agir, haverá uma proposta psicoterapêutica para cada psicodramatista; uma proposta social para cada sociodramatista; uma proposta teatral e política para cada dramaturgo. Em todas elas podemos nos colocar de maneiras distintas, junto ao paciente e a seu favor, com maiores chances de produzir a partir da nossa própria espontaneidade, a criatividade que lhes foi abortada.



Finalizamos com algumas propostas para reflexão :

Cuidar para que o psicodrama não seja desvirtuado enquanto prática clínica psicológica respeitada no meio científico como tal, delimitado ao campo da psicoterapia individual, grupal, de casal e família, e praticado por profissionais psicodramatistas regulamentados por seus conselhos de classe ;

Continuar aprofundando a prática do psicodrama público em forma de teatro e sociodramas, que atendam a interesses comunitários, estabelecendo os limites éticos de tais práticas e diferenciando-os da proposta do Psicodrama Terapêutico ou clínico.



Delimitados os principais ramos de trabalho socionômicos, não vimos razão para continuar a generalizar titulações específicas, formando-se apenas psicodramatistas. Afinal, ser psicodramatista é bem diferente de ser psicanalista, por exemplo. Mesmo para quem atua nos vários ramos de atividades institucional, educacional, teatral e clínica, seria interessante diferenciar o seu papel de sociodramatista do de psicodramatista.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

(1) BRANDER, Nathaniel - Auto-estima, Liberdade e Responsabilidade, 2ªedição Ed. Saraiva, SP 1997

(2) HOLMES,P. , Karp, M. , Watson M. — O Psicodrama após Moreno — Inovações na teoria e na prática, Ed. Ágora, SP 1998

(3) KELLERMANN, F.P. - Sociodrama. Revista Brasileira de Psicodrama, V. 6, p. 60, 1998

(4)LAPASSADE, G. - Grupos, Organizações e Instituições, Ed. Francisco Alves, 3ª ed. Rio de Janeiro, 1989

(5) LIBERMANN, A — " Retramatização : a ação dramática como agente de transformação — uma proposta sociodramática" . Revista Brasileira de Psicodrama, v. 3 fasc. II, 1995

(6) MAILHOT, B.G. - Dinâmica e Gênese dos Grupos, Livraria Duas Cidades, 4ªed., São Paulo, 1977

(7) MAISONNEUVE,J. - A Psicologia Social, Ed. Martins Fontes, 1ª ed. brasileira, São Paulo, 1988

(8) MORENO, J.L. — Psicoterapia de Grupo e Psicodrama Ed.Mestre Jou SP 1974

(9).....................- Psicodrama Ed. Cultrix 2a edição SP 1978

(10) PAGÈS, M. - A Vida Afetiva dos Grupos, Ed. Vozes, 2ª ed., Petrópolis, 1982

(11) ROJAS BERMÚDEZ, J.G. - Que es el Sicodrama? Editorial Celcius, Buenos Aires,4a ed.,1984

(12) RUESCH, J. — Comunicación Terapéutica, 1ª edição Ed. Paidós, Buenos Aires, 1964

(13) SOEIRO, C. A — Psicodrama e Psicoterapia, 2ª edição Ed. Ágora, SP 1995

NOTA: Texto Publicado na Revista Brasileira de Psicodrama. Comentado por Luiz Cuschnir. Vol.10 N°1pp.83-100. São Paulo: FEBRAP, 2002.

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