Produções do 17° Congresso Brasileiro de Psicodrama: Ensaio Científico

As expressões do eu e desempenho de papéis na contemporaneidade

Autora: Leonídia Guimarães
Colaboradores: Maikon Dias, Maria das Graças de Carvalho Campos e Silvana Cristina Sardá

INTRODUÇÃO
Compartilhamos, neste texto, um momento de reflexão do Grupo Abordagens Contemporâneas sobre o Eu: Quem sou eu na linha do tempo? Grupo criado na rede Conexões Profissionais do Ning, durante o primeiro Congresso Processual de Psicodrama ocorrido pela Internet, como etapa preparatória à realização do 17º. Congresso Brasileiro de Psicodrama e 1° Latinoamericano de Processos Grupais, em Águas de Lindóia (São Paulo, 2010).
Neste Grupo o objetivo era discutir algumas concepções socionômicas sobre o Eu - desempenho de papéis, buscando articulá-las ao tema do Congresso: Tempo para o Tempo.
Como mote para as discussões, introduzimos a questão da impaciência impregnada ao ritmo da vida moderna, percebida por nós como um sintoma social contemporâneo. Refletimos sobre a emergência deste sentimento em meio às incompletudes de presença-ausência nos relacionamentos, nos Grupos e Fóruns criados no Ning, nas nossas redes profissionais, nas casuísticas que acompanhamos no consultório e demais espaços familiares, sociais e afetivos. Norteamos esta questão buscando auscultar em nós mesmos as repercussões deste fenômeno, o que nos levou a pensar no papel do psicoterapeuta em relação às expressões do eu - papéis na pós-modernidade, refletindo sobre os efeitos dos tempos líquidos na constituição de novos parâmetros relacionais, e abrindo um canal para a compreensão de uma ética sem lei, que caminhou para a transformação dos valores sócio-culturais estabelecidos, gerando vínculos cada vez mais frouxos, sem compromisso, pleno em ambigüidades e dificuldades de fazer escolhas identitárias, sexuais e afetivas. Ousamos, ainda, buscar pistas transformadoras para tais fenômenos, sem fazer nenhuma pesquisa bibliográfica durante as discussões, nos movendo apenas pela intuição do momento, interesse e curiosidade quanto a estas questões.
E, como não podia deixar de ser, nos confrontamos com as vicissitudes dos vínculos virtuais, o que nos levou a ampliar o foco da discussão do sofrimento relativo à falta de proximidade e estado de presença, para o uso do Avatar no Psicodrama, o desempenho de pseudopapéis e relações construídas em “fundo falso”. Lembrando aqui o fundo falso dos poetas, assinalado por Fernando Pessoa e seu gosto pelo uso de heterônimos.
Aprofundando a amplitude dessas temáticas, passamos a pensar como possível lócus da impaciência, a fome de atos, atrelada ao desempenho de pseudopapéis. Admitimos que, malgrado a vantagem de poder fazer-se presente a longas distâncias, os vínculos virtuais primam por fragilizar a potência do ser humano em suas certezas, podendo construir relações imaginárias, mescladas em fantasia e realidade, que dificultam a delimitação dos nossos tempos pessoais, espaços, identidades e territórios - virtuais e sociais.
Ao discutirmos sobre o uso do Avatar e a representação de pseudopapéis, entendemos a sua força como possível forma de manipulação do outro, nos detendo na reflexão sobre a lógica desta ética. Optamos por nos isentar de julgamentos pautados na moral burguesa, mas, admitimos que tal como os poetas, nós psicodramatistas, ao dar vida a um personagem ou psicodramatizar nas situações cotidianas, podemos não nos dar conta da possibilidade de estar construindo um fundo falso, capaz de corroer os nossos relacionamentos pessoais, fugindo dessa forma do encontro autêntico, um conceito basilar do Psicodrama que pregamos como salutar ao desenvolvimento do ser humano e relações interpessoais.
Com tantos temas na mesa do nosso “Banquete”, seria impossível fazer aqui a transcrição de toda essa avalanche de discussões produzidas. A alternativa encontrada pela autora foi organizar as interlocuções e apresentá-las no seu formato original, buscando centrar o foco na temática  disparadora deste “parto quádruplo”, gestado em quatro meses de convivência virtual. As situações trazidas ao longo do texto foram contextualizadas como fenômenos observados na vida cotidiana de cada autor colaborador e partem das suas próprias perspectivas teóricas. Por isto, optamos por não colocar referências bibliográficas no final do texto, indicando apenas algumas leituras para quem possa se interessar em fazer pesquisas sobre a modernidade líquida.

Descritores: modernidade, impaciência, relacionamentos, amores líquidos, individuação.

DISCUSSÃO
Refletindo sobre a impaciência que move os relacionamentos no mundo atual, percebemos a princípio que para superar o tempo da impaciência na pós – modernidade é preciso muito diálogo confirmado em estado de presença, proximidade e compromisso com o outro. Presença nos espaços de tempos disponíveis em si mesmo, e nas relações que nos envolvem convocando paciência para estarmos presentes em suas vidas. Mas não temos tempo para tudo e para todos. No consultório marcamos o tempo de cada paciente, sem questionar se a qualidade desse tempo permitiria ao outro acomodar-se à nossa ausência. Dizemos que sim, pois é o que demanda a realidade do vínculo em psicoterapia. Ajustamo-nos neste espaço de tempo para atender a esta demanda, até que nossa presença seja internalizada e incorporada ao vínculo, imaginando com isto que ocorrerá uma solução forjada pelo eu demandante para fazer frente ao sentimento de impaciência, até o próximo encontro, alternando os diferentes tempos de presença – ausência, inclusive porque sabemos que o futuro desta relação terapêutica é caminhar para o descartável.
Por outro lado, existe na vida cotidiana a necessidade de construir vínculos permanentes. E sabemos que internalizar o outro ausente pode gerar sentimentos de angústia ou impaciência sinalizando para o Eu a necessidade de maior investimento relacional, ou um confronto com a realidade de ruptura do vínculo, reconduzindo para a busca de novas relações, outros grupos, novos amigos ou parceiros sexuais. Uma solução saudável e nem sempre alcançada sem certo sofrimento. Muitas rupturas ocorrem dadas à impaciência ou excesso de demanda. Mas também é certo que a inércia ou indiferença trazida para o vínculo, provoca impaciência e insegurança. Lembrando da importância dada por Moreno à complementaridade entre os papéis, imaginei que se o vínculo oferecido na vida real for apenas ficcional, as expressões do Eu – Papéis podem evoluir para a impaciência, mesclando angústia à ansiedade de contato. Talvez como uma forma de equacionar as ambigüidades do vínculo, deixando emergir a ansiedade para assim provocar outro movimento ao vínculo, fazendo confrontos com a realidade. A minha pergunta para agora seria, como abordar a impaciência em suas diferentes formas de expressão emocional, na atualidade, através do desempenho de papéis?

- Silvana Sardá: Leonídia. Pensei sobre a paciência como uma questão de maturidade e lembrei um conceito que define a paciência como ciência da paz. E justamente paz é o que buscamos. Paz no mundo, nas relações, paz de espírito. Seria a paciência uma das formas de conseguirmos o processo de individuação? Seria possível bastar-se na ausência por estarmos certos da presença? Até que ponto o outro se dispõe a comprometer-se, na modernidade? Sabemos que muitas relações estão sendo substituídas por objetos, vícios, o consumo pelo consumo, enfim, diferentes formas de “fugir” do desenvolvimento humano, deixando nossa mente entretida com cacarecos pós-modernos, e cada vez mais distante da reflexão sobre si e o outro.
E nós? Buscamos, enquanto psicodramatistas, melhorar as relações nos espaços em que atuamos. Ao mesmo tempo em que investimos em ações para aprimorar as relações também somos engolidos pela máquina do consumo. Quais são nossas chances de lançarmos um pouco de luz à consciência do desenvolvimento humano? Paralelo a tudo isso tem as mudanças climáticas, tudo que é sólido começa a derreter, não temos mais estações definidas, tanto o homem quanto a natureza parecem não se guiar mais pelas mesmas leis. Quem sabe um pouco de contradição possa ser saudável, já que a história não é escrita em linhas retas. Não conseguir investir tempo suficiente para cada coisa talvez seja um dos males do século. Tudo muda tão rápido o tempo todo que os cérebros parecem perder a capacidade de aprofundar em algo que lhe seja agradável. Será que conhecimento também se constrói na mesma velocidade em que se muda de modelo de celular? E na contradição a vida se dá, mas pro momento como diria Sócrates “Só sei que nada sei”.
 
- Arrisco-me a dizer que talvez a potência do ser humano venha exatamente da consciência dessa fragilidade. Penso ser natural o sentimento de inquietude ou impaciência, em determinadas circunstâncias. Sentimo-nos inquietos e frágeis enquanto não aquietamos a mente lá no “porão” – porão aqui como espaço mais profundo que existiria em nós, como o Núcleo do Eu, centro das nossas emoções. Podemos puxar daí o fio para as nossas ações. O mais difícil é harmonizar o sentir e o pensar tais sentimentos para poder agir em consonância, mantendo a coerência. A fuga é sempre uma opção, individualista ou coletivizada pela cultura. Por isso precisamos de tempo. De dar um tempo para amadurecer o presente, poder contê-lo e ultrapassar um momento que esteja ainda fragilizado. Pensando um pouco sobre isso, agora, eu diria que podemos pensar o tempo da impaciência como um tempo adolescente. Uma espécie de “elástico” fixado entre a nossa criança interna e nós adultos. O que somos lá no porão das nossas emoções. E aquilo que buscamos ser, mais ainda não se concretizou, mesmo sendo já adultos, pois sempre haverá em nós algo a amadurecer. Puxando aqui também o que já foi colocado sobre a imaturidade da impaciência, contrapondo-a a paz e à maturidade de uma paciência que espera pacientemente pela presença do outro por sabê-lo (ou senti-lo) presente.
Outra questão seria como pensar uma potência que vem da fragilidade da incompletude? Será que podemos vincular isso com as evidências de incompletude nos relacionamentos atuais? Seriam necessidades de aprofundamento fragilizadas pelas impossibilidades de presença em diferentes tempos, barradas pela intermitência de outros tempos que se esvaem em múltiplas direções, desejos, ocupações e pensares? Enfim, parece que ao doarmos o nosso tempo ao outro, perdemos o mínimo de tempo que nos resta para aprofundar questões mais íntimas. Ao tempo em que, podemos vir a fragmentar o tempo do outro no seu próprio interesse, conquistando a sua presença. Então, talvez a saída seja nos perdoar e perdoar ao outro, sem fazer cobranças inquiridoras. Ouvi certa vez uma definição de perdão que dizia que perdoar é perder e doar. Ou seja, é preciso perder algo para então poder doar o que se tem. Algo bem difícil de ser feito, se não internalizarmos o princípio do amor como fio condutor da nossa existência, sabendo-a ser compartilhada, pois através da presença nascemos na existência de outro. Não somos árvores plantadas em solos férteis, adubadas pela própria natureza. Neste sentido, a Natureza apenas doa, não precisa de doações. E certamente nunca conseguiremos como seres humanos, nos comportar como a Natureza.
                                                    
- Silvana Sardá: Linda a sua colocação em relação à natureza como aquela que doa tudo o tempo todo. Outros escritos seus me fizeram pensar um pouco em uma possível relação entre o exercício do perdão e a impaciência, buscando aprimorá-la a uma forma mais saudável de agir. O que me incomoda no outro é algo que preciso reelaborar e pensei neste processo como uma das formas de desenvolvimento humano. Estar impaciente então pede reflexões, enxergar melhor o outro, aceitá-lo com suas imperfeições, aceitando assim a nós mesmos. Neste sentido estou tentando trazer a questão da impaciência a uma ótica mais otimista, já que poderíamos através dela produzir reflexões. A paciência e a impaciência, ali, sinalizando as relações, podendo oportunizar algumas mudanças, desde que consigamos perder-doar, tarefa não fácil, principalmente quando o copo transborda. Interessante aqui este seu adendo sobre impaciência – adolescência - elástico, pois o adolescente em geral é corajoso, pensa rápido, “não leva desaforo pra casa”, costuma ter atitude, mas precisa também chegar à vida adulta e continuar seu processo de evolução. Penso ser saudável a criança e o adolescente co-existirem em nós, ditos “adultos”.

- Então chegamos a um acordo quanto ao lado positivo da impaciência. Impaciência que o mundo moderno vem provocando. Antes podíamos colocar o tempo como um "elástico", hoje o elástico somos nós. A globalização tem seu lado bom, mas apavora. Absorve em grandes goles quase todo o nosso tempo de conviver na intimidade e, paradoxalmente, precisamos acelerar esse processo de elas- tecer o Eu para fazer frente a esta realidade, convivendo com este “elástico” interior que ora puxa pra lá, ora pra cá. Algo semelhante, talvez, àquela ansiedade que perpassou a virada do século XIX, simbolicamente representada em patologias e neuroses típicas, dado à impossibilidade de tempo para elaboração das exigências opostas e do rigor das normas sociais que incutiam o hábito de “educar” adolescentes para serem adultos bem comportados, sem deixá-los viver a própria adolescência em sua impaciência e incoerência de ser. Penso que através dessa compreensão da impaciência como algo positivo que nos leva à reflexão, talvez exista um elo forte entre o Eu e a impaciência, que pode corresponder aos diferentes estados de ânimo, ou seja, algo ligado aos sentimentos básicos de amor e ódio, aos afetos positivos e negativos. Então, focando esse lado da impaciência nos relacionamentos, entram em cena os afetos básicos como elo entre o eu e o tempo, refletida nos intervalos entre presença-ausência do outro, como um estágio essencial de amadurecimento do eu. Isto aliado à idéia do amor como potência máxima de brilho, mesmo que na sua imanência. Amor como fio condutor das ações que levariam o eu a um amadurecimento mais saudável e que conseqüentemente, iria possibilitar o sentimento de segurança dentro das relações interpessoais.
Sua escrita questiona o que podemos fazer pelo desenvolvimento humano? Eu me pergunto antes disso se, aceitando a exigência da modernidade, estariam de fato ajudando crianças e adolescentes a se tornarem pessoas saudáveis. Aqui me chega uma dose de ceticismo ao perceber que durante essas passagens, nas quais se mudam os paradigmas, às vezes esquecemos um pouco de dosar os excessos, doando compreensão e amor incondicional em momentos que exigiriam o oposto. Momentos em que precisamos perdoar e optamos por perder e doar; momentos que são nossos, mas que podemos doar com algum sacrifício; e momentos em que precisamos ser perdoados, impor nossos limites e frustrar o outro em suas expectativas de doação, para que possam crescer. Poder fazer isso para mim seria algo saudável, pois implica movimentos de ambos os lados. Ter isso em mente requer certo amadurecimento quanto a certezas e incertezas do amor do outro e, a meu ver, resultaria no exercício da reciprocidade, implicando na superação do apego. Mas o Eu se apega muito ao que lhe dá prazer, não é mesmo? Quer e às vezes prefere ser amado mesmo que se sacrificando, deixando de viver o seu próprio momento em benefício do outro. Às vezes sucumbimos ao amor sacrificial, como é mostrado no filme As Pontes de Medison. Eu penso que como fruto maduro o amor deva ser vivido em toda a sua intensidade e completude e que para chegar a ser intenso esse amor precisa existir em via dupla, conforme Moreno já anunciou. Mas por que temos tanto medo de arriscar, de testar o amor do outro encarando a possibilidade de incompletude, se sabemos que só assim haverá consciência desse sentimento? Será que um dia conseguiremos criar nossos filhos, sem lançar mão do amor sacrificial? Enfim, minhas reflexões caminham agora para este estágio de amadurecimento do Eu no Tempo, o amadurecimento para o Amor. Os Junguianos dizem que seria um estágio mais tardio, evoluir para o amor sacrificial – fase da Metanóia, meia-idade, do desenvolvimento da espiritualidade. Uma fase de amadurecimento para as perdas impostas pela vida afora. Eu penso que talvez, se pudermos ultrapassar o amor sacrificial em etapas menos avançadas, talvez seja possível atingir-se o amor mais pleno, exercitando o desapego, com a certeza de que o amor não é um bem de consumo, negociável, ajustável, portanto há de ser conquistado por outras vias.

- Graça Campos: Tempo Eu. Linha do tempo, presença, ausência, quanto tempo vivemos a cada minuto dentro de nós mesmos? Tempos que se formam dentro da Matriz de Identidade quando percebemos que o outro existe na ausência, chama Moreno do início do fator tele. Tempo de angústia quando não captamos que tele é também um evoluir para a auto tele (Zerka). Consolo para o tempo do envelhecimento? O que é o psicodrama na linha do tempo? O que ressoa dentro do tempo de cada um? Não estou falando de transferência ou contra transferência. Estou falando do tempo que transforma o olhar e nos faz perceber o outro dentro de um novo tempo. Tempo que nos leva para a espontaneidade? Não sei. A questão do tempo de hoje – presente - amores líquidos. Vejo hoje, muita pressa, jovens de 23 anos dizendo que já estão velhos. O tempo da minha infância, longas tardes brincando na rua, noites batendo papo “sentada ao redor do fogão à lenha no inverno”. Tempo que também já se foi: O inverno.

- Você cita os amores líquidos da atualidade, o que dentro da perspectiva do tempo de presença-ausência no outro, me parece bem significativo, porque tenho visto isso no consultório e demais espaços, realidade muito próxima, a exigir reflexões. Por exemplo, até que ponto estar preparado como psicoterapeutas para entender um tempo que não vivemos na carne e osso? É preciso compreender essa leveza na forma de compartilhar corpos e sentimentos de forma tão intensa e, ao mesmo tempo, passageira. Ao que parece, colocando-se “fora” da relação e, a partir deste lugar, passar a ver e mostrar-se ao outro com bastante intensidade, mas de forma inconseqüente. Amores em relacionamentos líquidos, às vezes vividos em grupo, com relações do passado ainda presentes e atuantes. Pessoas com as quais se fica em uma festa, momento de carência ou excitação. Relações às vezes estabelecidas sem definição de preferências sexuais, ou com definição por ambos os sexos, vividas ao mesmo tempo. Dizemos que são relações rizomáticas e podem manter-se sem preferências por gênero, são momentâneas, não precisam enraizar-se e estão de acordo com os tempos modernos. Mas o que venho percebendo na atualidade é uma dificuldade enorme, nesses pares, de fazer escolhas e tomar decisões em relação à própria vida (inclusive profissional). Chegam para a terapia totalmente confusos, o que nos faz pensar que esta forma de relacionar-se não esteja sendo tão prazerosa. Sobre a tele e auto tele, sempre imaginei a tele como movimento evolutivo ou de amadurecimento relacional.

- Graça Campos: Nesta questão de tempo dentro dos nossos afazeres profissionais, eu brinco que psicoterapeutas não podem envelhecer. Há que ficar sempre dentro do mundo. Eu me lembro do grande susto que vivi em meados dos anos 80, quando me deparei com alguns pacientes chegando ao consultório com grandes alianças de noivado nos dedos e o retorno das festas de quinze anos. Fiquei sem entender. Passei a me perguntar em que mundo eu estou? Havia passado a faculdade lendo livros feministas, criticando a burguesia, discutindo o casamento aberto e o sexo livre, lutando contra a ditadura, ouvindo Chico Buarque, Milton Nascimento, Caetano Veloso... Tivemos o tempo do Prosac. Idas e vindas do tempo? Tentativas de frear o tempo da morte? Retorno a segurança? Para Moreno a espontaneidade não se encontra solta no vácuo, ela é sempre uma função da conserva. E hoje? Encontramos o amor líquido, estou fora do “meu mundo” “fora da relação”, medo do aprisionamento? Desfragmentação, reprodução de um mundo descartável?
- Silvana Sardá: Sob uma perspectiva mais ampla, a mudança de paradigmas, cultura, valores, acontece de geração a geração. E enquanto psicólogos que leituras podemos fazer dessas mudanças na pós-modernidade, neste tempo de liquidez nas relações? Pensei as relações líquidas a partir de um Eu dentro de um tempo de impaciência, não mediado por reflexões, deixando assim tênues as linhas que atravessam as relações, tornando-as frágeis, fugazes, modais (como quase tudo que existe de consumo a nosso redor). Relações sem investimentos relacionais adequados do Eu, na tentativa de desenvolver-se dentro e/ou através delas. Relações que estão praticamente no extremo oposto ao amor sacrificial de que anteriormente falava Leonídia, mas que é sempre bom lembrar que ir de um extremo ao outro não implica mudança. Um Eu que em algum momento depressivo/reflexivo, pode dar-se conta que por todo aquele tempo não se abasteceu de nada de real e estará a andar nu ao lado de seu imperador. Talvez possa ser exatamente aqui, que este mesmo Eu, poderá ser sensibilizado pelas labaredas de um amor que tenta encontrar brechas para que possa brilhar. Então este equilíbrio a que buscamos, onde pensamos estar um caminho mais saudável para o desenvolvimento humano, parece ser percorrido por uma minoria que, pacientemente escolhe olhar para dentro para poder enxergar a si e ao outro ali contido, podendo quem sabe conseguir “amar-durecer” este amor.
- Maikon Dias: Já dizia Moreno: primeiro é a relação. E as relações se dão por meio de papéis. Estamos sempre incorporando uma parte que não é nossa, o chamado denominador coletivo. Percebo a impaciência negativa como conserva amplamente difundida em nossa cultura latina quando se fala em amor. Como se o terreno do amor fosse terreno para agir impulsivamente, apenas se deixar levar pelos instintos, lutar até a morte pelo seu amor, fazer qualquer coisa para ter a pessoa amada, até se anular. Enfim, um extremismo emocional que confunde muita gente. Desde músicas sertanejas aos filmes do Almodóvar, parece que existe uma “licença cultural” para que façamos quase qualquer ato em nome de uma relação amorosa. Não me admira que tenhamos tantas noticias de crimes passionais, de várias maneiras os estimulamos, nessa “educação para a simbiose” que nos faz acreditar que jamais seremos felizes sem determinada pessoa (aquela que julgamos amar). O que se aproxima do que vocês falam sobre amor sacrificial. Essa é uma tendência.
Outra tendência está representada na clássica frase que mães e avós costumam dizer a nós jovens: “Aproveitem bem antes de casar, namorem bastante...”. Nunca entendi direito o que é esse tal de aproveitar, mas pra mim essa conserva se encontra na base dos amores líquidos da contemporaneidade. O amor descompromissado, mesmo que não seja amor (a gente finge que é). O processo de se experimentar, mesmo que se experimente sempre a mesma coisa. Enfim. Curta e não se comprometa. Como encontrar um equilíbrio entre a antiga conserva (amor sacrificial) e a nova conserva (amores líquidos)?
Vamos vivendo e assumindo papéis, e com isso mesmo sem perceber, vamos contando a nós mesmos a história de quem pensamos que somos. Para tal, usualmente nos baseamos em uma conserva cultural. Cedo ou tarde temos de destacar algum papel para chamar de nosso. Essa história que contamos a nós e aos outros, constantemente atrelada a um papel fundamental, é, obviamente, uma generalização. Como diz a música do grupo Engenheiros do Haway: “Somos o que há de melhor, somos o que dá pra fazer, o que não dá pra evitar e nem se pode esconder”. Assumir papéis implica em encarnarmos, em alguma medida, os rótulos e estereótipos associados a eles. Como mostra Foucault, a sociedade não suporta bem a ambigüidade, dessa maneira, exige que sejamos enquadrados. Não falo de transferência, mas de exclusão psíquica e auto-engano. Estes mesmos rótulos são capazes de conferir poder às relações. Parecer também é poder. Se o sujeito acredita é real para ele, se outras pessoas acreditam, é real para elas, e se instituições acreditam o poder é oficializado.

- Gostei muito dos comentários acima, sobre a importância primordial da relação e a incorporação ao eu de papéis coletivos, nem sempre em sintonia com o que se é de fato. Algo que pode resultar na formação de pseudopapéis, segundo o enfoque de Bermúdez, papéis desenraizados do eu. Quanto aos comentários em relação aos amores líquidos, contrapondo-os ao amor sacrificial, já se encaixam em uma linha de análise que segue o tempo de amadurecimento do Eu, para o amor. A maturidade seria um equilíbrio entre os dois extremos, ou seja, relações com compromisso e sem anulação. Neste ponto entra a compreensão dos valores que sustentam uma determinada forma de relacionar-se consigo mesmo e com o outro.
Mas acredito que o alimentar-se de ilusões, permanecendo cego (ou nu) em relação ao outro, já envolve o comprometimento da tele. Tele enquanto percepção assertiva de afetos, com a apreensão de climas afetivos e entorno relacionais distorcidos. Cabe então incluir aí pouca sensibilidade, intuição e capacidade télica, quem sabe até estados emocionais não saudáveis, ou patológicos. Algo mais complexo do que pensar nessas relações líquidas como decorrentes típicas do tempo da impaciência ou pós-modernidade.
Por isso fiquei pensando se a impaciência negativa, ou seja, aquela que inviabiliza ou dificulta muito o pensar, refletir e agir em consonância com a situação poderia ser tomado como vertente dessa liquidez nas relações atuais. Creio que seria mais viável entender a impaciência negativa como um traço de imaturidade, que produz estrago nos relacionamentos. Quando penso na impaciência lembro o que Moreno preconiza sobre o período da Fome de Atos, e associo isto ao que estamos discutindo sobre a questão das relações líquidas. Então o fenômeno da impaciência nos pediria reflexões quanto as suas possíveis origens ou lócus aí neste período da Fome de Atos. A impaciência sinalizando para um traço que produz estrago nos relacionamentos. Algo que, mesmo visto pelo lado positivo da impaciência que leva às transformações, pode levar também aos transtornos de ansiedade e transformar-se em angústia (quando refletidas) ou em atuações irracionais, agressivas e inadequadas às expressões do eu - desempenho de papéis.

- Graça Campos: Sim. Atuação irracional nos levaria a desunir esses pares de opostos, já que a sua busca é: “eu quero porque quero”. O caso não é eliminar, é juntar, penso ser este o valor da tolerância. Por falar em valor, tudo isto daria um bom Axiodrama: A tolerância, do latim tolerare (sustentar, suportar) é um termo que define o grau de aceitação diante de um elemento contrário a uma regra moral, cultural, civil ou física. Do ponto de vista da sociedade, a tolerância define a capacidade de uma pessoa ou grupo social aceitar, noutra pessoa ou grupo social, uma atitude diferente das que são a norma no seu próprio grupo. Numa concepção moderna é também a atitude pessoal e comunitária em face de valores diferentes daqueles adotados pelo grupo de pertença que origina. (Wikipédia, a Enciclopédia Livre).
- Silvana Sardá: Muita coisa pra se pensar, não é? Será que os amores líquidos da atualidade poderiam dizer a respeito de algo bem mais complexo? Poderiam ser associados à eus não saudáveis ou patológicos? Lembrei-me desta frase, dita por um professor meu: “O mundo era esquizofrênico e hoje está perverso”. A sociedade atual quebrou regras e tabus, mas carece de “Lei”, perdeu seu norte, não sabe para onde caminha, mas segue a trilha da intolerância. Buscarmos o lócus da impaciência como traço que produz estrago nos relacionamentos, talvez possa nos ajudar a perceber os “nós” e “buracos” da trama até então tecida.
Penso que a impaciência que se move pelo descartável, contribua para amores líquidos. Mas a impaciência reflexiva, ainda que escolha por romper, já contribui para uma nova solidez nas relações, porém uma solidez com critérios bem diferentes do amor sacrificial. Pois esta já se move buscando outro tipo de relação. A impaciência reflexiva, tentando abrir uma brecha para mover-se contra amores líquidos, mesmo quando escolhe por romper.
Sobre os transtornos de ansiedade, acho que demandaria outro foco de reflexão (nossa) sobre a impaciência. Talvez uma impaciência mais agressiva, consigo mesmo e com o outro. Precisaríamos rever o que já temos teoricamente em cada transtorno, e aprofundar o estudo um pouco mais, sob a ótica da impaciência enquanto traço desses transtornos.
E já que pensamos no lado positivo da impaciência, acabei também pensando no lado negativo da paciência. Porque também não podemos pensar que aceitar tudo de bom grado seja bom. O que, aliás, é péssimo. E enquanto cristãos muitos foram educados assim. A paciência aliada à energia estagnada que não luta, não reivindica, submete-se ao erro, distante da vontade de potência. A não superação. Paciência sem reflexão. Quantos filhos ela pode ter gerado? E quantos filhos gerarão agora a impaciência? Paciência X Impaciência, tai uma boa dupla que assim como Narciso e Eco, precisa encontrar a integração de opostos. Será que todas essas idéias casam?

- Sobre os valores envolvidos na questão da tolerância, penso que vão formando as etnias, guetos, clubinhos ou igrejinhas e até mesmo as gangues, conforme costumamos definir. E no mundo animal não é diferente. É muito difícil, se não impossível, transformar os sistemas sociais, nem Marx conseguiu com toda a sua teoria humanista. Conseguiu contribuir, mas não avançar quanto às transformações da sociedade. O legado deixado por Moreno tampouco conseguiu transformações, já que o nosso meio é povoado de todas as divisões possíveis. E já que também estamos falando de espiritualidade é bom lembrar que nem Jesus alcançou esta façanha. Amar os inimigos, que grande desafio! Enfim, se a gente for esmiuçando mais esta história dos fatores socioculturais que vão conformando os graus de tolerância, descobre qual a regra básica para não ser lançado para fora como uma bola de tênis, lembrando aqui a crônica: Relacionamento, Tênis e Frescobol, de Rubens Alves. Ou seja, o truque seria passar a bola ao parceiro e poder devolvê-la gentilmente, para assim continuar o jogo com a mesma cumplicidade dos amantes.
Creio que conseguimos elaborar algumas coisas que haviam ficado pendentes, no caso de se amar o amor entra em jogo o narcisismo. Muitas pessoas dizem amar demais, mas não conseguem ficar com ninguém, embora sempre estejam apaixonados. Na realidade talvez não amem de fato, mas precisem ser amados e sentir as endorfinas em ebulição constante para se sentirem vivos. Algo depressivo, diria eu, que vem de uma falta maior difícil de ser suportada.  
Quanto à ansiedade da Fome de Atos haveria um pedido de resposta imediata do outro.  Certamente a necessidade de complementaridade entre pessoas ansiosas encontra-se em grau máximo, levando-as a buscar a realização de desejos imediatamente. E este desejo, por ser imperioso, pode declinar de uma escolha exclusiva de parceiro. Talvez seja isto o que aconteça nos casos dos amores líquidos: a pulsão do desejo, por ser muito forte, atua em função da própria realização do ato instintivo, transformado em meta exclusiva. Os etólogos afirmam ser este o caminho natural de satisfação do instinto animal. Quem sabe seja esta uma forma de adaptação natural ao grande desenvolvimento tecnológico por que passamos no último século, exigindo da sociedade respostas mais rápida em suas relações com o mundo?
Nos humanos contrapomos nossa realidade instintual aos valores humanos e morais, absorvidos durante o processo de socialização e interiorização das regras de comportamento vigentes na sociedade e, com isto, muitos conseguiram domar os instintos, em séculos passados. Quando não se conseguiu cumprir as regras, extrapolou-se para a máxima de que “os fins justificam os meios”. Dessa forma, podemos também estar prescindindo dos objetivos de construir uma relação verdadeira, colocando a satisfação do instinto sexual como meta. Esta análise me parece ser algo a ser considerado em relação aos amores líquidos contemporâneos. Novos valores sociais estão sendo estabelecido entre os jovens, daí a máxima de que a sociedade era esquizofrênica e tornou-se perversa, conforme foi citado por Silvana. Estamos nos submetendo automaticamente a muitas circunstâncias inéditas às quais temos de dar respostas muito rápidas, por motivos que nem sabemos explicar ao certo por que e sem ter a exata noção do quanto podemos naquela hora estar ultrapassando os nossos limites, nos agredindo e violentando nosso próprio ritmo, prioridades, desejos e vontades.
Podemos admitir que as produções culturais da pós- modernidades não estão contribuindo para a evolução saudável do ser humano, na medida em que vem produzindo um “fundo falso” para contracenar com pseudopapéis, lapidados por vínculos ficcionais, ricos em ambigüidades e posturas hegemônicas. Isto nos aponta alternativas conciliatórias entre sentimentos e idéias que podem fragilizar o ser humano em seu potencial para ultrapassar os limites que restringem suas emoções espontâneas e forjam liberdades de ação desvinculadas da realidade interna de cada um. Refletir sobre isso pode nos ensinar a trabalhar com este tipo de conflitos via a unificação dessas polaridades. O mesmo acontece em relação ao processo de individuação por que passamos na vida, até atingir a sabedoria do perder-doar e amar, amadurecer e perdoar, atingir alguns níveis de compaixão, ampliar a tele e desenvolver a auto tele. Que bom ter conseguido pensar sobre tantas questões contemporâneas, abrindo um leque de possibilidades capazes de fortalecer o Eu - Papéis na sua caminhada ao longo do tempo.
Quando eu penso na impaciência como negativa, vinculada a alguma patologia ou involução da tele, associo isto aos transtornos de ansiedade, a algo mais generalizado que embora possa estar presente nos amores líquidos, não se restringe apenas a estas relações. Prejudicam todas as relações interpessoais, incluindo a relação com o trabalho, estudo, projetos pessoais e futuros. Algo que se alastra ao entorno relacional do indivíduo cristalizando uma forma de agir que pode chegar à incapacitação e inadequação.
Em relação ao entendimento dos amores líquidos como fenômeno da pós – modernidade eu acredito que as nossas reflexões corroboram, desde que vistas dentro de um patamar de “normalidade” ou saúde emocional dos envolvidos. E por aí, podemos inserir um conceito de impaciência reflexiva como positiva, dentro de uma relação na qual os opostos se encontrem e possam contrapor a liquidez do não pertencimento à vontade de aprofundar a relação e amadurecer, fazendo os ajustes necessários para que a relação possa durar através do tempo, sem ser descartada ao primeiro impacto. O que exige entrega e compromisso, e por aí já afasta o fator hegemônico dessas relações líquidas, em que há falta de compromisso e intolerância de ambos os lados, gerando muita fluidez e cegueira emocional em relação ao outro, e ambos suplementam provisoriamente a estagnação para a autotransformação.
Lembrei agora da fala de uma personagem da novela das oito (Viver a Vida, 2009/10), que pode ajudar nesta reflexão: o ex-namorado, que já está levando adiante outra relação, tenta uma reaproximação, alegando que acha que os dois ainda se amam e ela diz que não basta amar, é preciso amar, gostar e tolerar. Muito interessante este insight do autor.  
Enfim, creio que podemos concluir nesta primeira parte da discussão que numa relação em que as expressões de impaciência-paciência, inseridas no conjunto Eu – Papéis constituam-se como opostos complementares positivos ao relacionamento, poderá surgir uma impaciência reflexiva neutralizando tanto a paciência quanto a impaciência negativas. Este efeito surgiria da transformação e unificação dessas polaridades, fazendo com que os parceiros aceitem esses dois movimentos opostos em si mesmo, e no outro. Com esta evolução relacional, poder-se-ia elevar o nível de tolerância interpessoal e ultrapassar os fatores que conduzem à fluidez nos relacionamentos contemporâneos.
Obrigada a todos pelas interlocuções, este foi um momento de reflexão muito rica para todos nós. Que possa aquecer outras pessoas a refletir sobre as ressonâncias dos tempos modernos em suas práticas profissionais e cotidianas.
 
PARA SABER MAIS
BAUMAN, Zygmundt. Amor Líquido – sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. Tradução: Carlos Alberto Medeiros.
....................................... A Arte da Vida. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. Tradução: Carlos Alberto Medeiros.
....................................... Tempos Líquidos. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. Tradução: Carlos Alberto Medeiros.


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