17° CBP: Psicodrama e Neurociência


 CONEXÕES: PSICODRAMA, NEUROCIENCIAS E TEORIA DO NUCLEO DO EU


Por Elisabete Martins de Santana Brandão         

INTRODUÇÃO
Este trabalho visa chamar a atenção para os novos achados das neurociências, exaltando a importância da biologia cognitiva através do conceito da Autopoiese (a organização do vivo de Maturana e Varela), sobre a investigação das funções distintas dos hemisférios cerebrais (Gazzaniga), dos trabalhos de Antonio e Hanna Damásio nas investigações da função das emoções e sentimentos para a consciência, e de como estes achados estão relacionados com a teoria Moreniana e entrelaçados às teorias da estruturação básica da personalidade do Núcleo do Eu e Esquema de Papéis de Bermudez.

Tabs: autopoiese, neurociência, núcleo do eu.

DISCUSSÃO
A ciência nos dá uma imagem de um cérebro com estruturas e funções comuns a todos os homens, sem fazer distinção da singularidade de cada indivíduo; não levando em conta o sexo, a cultura, enfim, a variedade de cérebros humanos especiais, tais como os artistas, cientistas, homens que desbravaram o mundo. Liciano Mecacci diz:
"La variedad del cerebro humano, sin embargo, es ignorada. Se estudia un cerebro normal que no existe en la realidad." (7)

E Moreno?... Um visionário?... Um profeta? Um gênio com certeza! Ele dizia que o Psicodrama seria a revelação do terceiro milênio, uma necessidade para a sobrevivência da humanidade com o apoio de uma psicoterapia grupal:

"Há dois mil anos, a humanidade sofreu, como nós hoje, uma crise de primeira grandeza. Para as grandes massas, a catarse proveio do Cristianismo, devido a universalidade dos seus métodos e à praticabilidade dos seus instrumentos-amor e confissão, caridade e esperança - em vez da que promanava das escolas filosóficas do Egito e da Grécia. Em nosso tempo, as ciências sociais e mentais têm em mira um propósito semelhante ao que a religião atingiu outrora. As massas humanas sofrem de inquietação social e mental. Provavelmente, a catarse virá de novo de instrumentos que combinam a universalidade de método e grande praticabilidade. Um dos métodos mais promissores desenvolvidos nos últimos vinte e cinco anos e que preencheu essas exigências é o método psicodramatico." (10)

Moreno já sabia e denominou "espontaneidade", a capacidade do cérebro, que "instalado de fábrica", possui dispositivos natos, capazes de solucionar problemas corriqueiros, executarem tarefas cruciais, desde governar nossa locomoção e respiração, e até a resolver silogismos, como nos mostra Gazzaniga, que enfoca o trabalho do cérebro numa perspectiva evolucionista, onde nossa vida mental é o resultado de ações de milhares de dispositivos neurais, instalados previamente no cérebro, que executam tarefas cruciais para todos nós.
É fácil crer em dispositivos que comandam nossa respiração, por exemplo, sem que tenhamos consciência, mas é difícil crer que esses dispositivos executem grandes numero de tarefas antes de nos darmos conta do que acontece - cremos que sempre estamos no comando. Investigações recentes comprovam que "não dirigimos o espetáculo". Parece que sim, devido a um dispositivo especial no hemisfério esquerdo que Gazzaniga denomina de:

(…)"interprete" este dispositivo genera la ilusion de que gobernamos nuestras acciones, y lo hace interpretando nuestro pasado, esto es, las acciones previas de nuestro sistema nervioso.(3)
Moreno tinha um cérebro especial, privilegiado, com capacidade de processar sinais rapidamente e desentranhar a complexidade das relações sociais. Com conhecimentos filosóficos, sociológicos, históricos... Conseguiu entender as leis sociais que regem o relacionamento dos indivíduos, criando uma psicoterapia de grupo.
Os estudos da neurobiologia cognitiva comprovam as bases biológicas do entendimento humano, e nos mostram a importância de nos conhecermos, compreendermos a natureza do processo de aprendizagem, que determinam a diversidade das condutas humanas, nos mostrando a necessidade dos lideres políticos e sociais conhecerem essas leis, para que se possa fazer algo de concreto para a sobrevivência da humanidade:

"Para a compreensão desse processo deveriam convergir todas as forças e interesses das ciências sociais. Mais ainda: dada à importância do processo de aprendizagem social na evolução cultural de uma sociedade, essa matéria deveria ser tema obrigatório de debate acadêmico na formação curricular de todo profissional (cientistas políticos educadores, Forças Armadas, homens de empresa, comunicadores sociais, etc.), considerando-se a imensa responsabilidade social que eles têm na evolução dos bens complexos sistemas sociais modernos, que faz com que a cibernética (sistêmica) aplicada ao social seja um complemento básico para tais funções". (6)

Moreno já intuía a "autopoiese", conceito criado por Humberto Maturama para descrever a organização própria do ser vivo. Disse Moreno, em Palavras do Pai:
Como pode uma coisa
criar outra coisa,
sem que esta outra coisa
crie a primeira?
...
Como pode um pai gerar um filho,
sem que o filho
também gere seu pai?
Como pode um avô
gerar um neto,
a não ser que o neto
seja um avô para o seu avô?
...
O primeiro criou o último
E o fim criou o começo.
Eu criei o mundo,
e, portanto, Eu devo ter criado a Mim mesmo" (8)

Este poema reflete a natureza autopoiética dos seres vivos, que quer dizer, ser organizado de tal modo, que o produto de um sistema é ele mesmo. Autopoiese, explica a organização própria do ser vivo. São sistemas que funcionam de modo integralmente circular, delimitados como uma unidade por uma fronteira que é ela mesma produzida pelo sistema que delimita. Neste tipo de sistema o ser e o fazer são inseparáveis, pelo que, o modo específico de conhecer que deriva desse modo organizacional, conduz a que todo o ato cognoscitivo seja determinado pela estrutura do conhecedor e não pelo objeto conhecido.
É verdade que tudo que somos, vivemos e existe é resultado de fusões entre átomos, moléculas, células, culturas, etnias, raças, religiões, linguagem etc. É parte da dança do universo, onde conhecer, fazer e viver não são coisas separáveis. Somos parceiros nessa dança construtiva, onde a realidade e nossa identidade estão sempre em processo de transformação e reconstrução:

"Todo conhecer é uma ação da parte daquele que conhece"
"Todo conhecer depende da estrutura daquele que conhece" (6)

O processo do conhecer está enraizado no ser vivo como um todo. É fácil entender e aceitar a interdependência que existe entre o individuo e o meio ambiente em relação aos organismos unicelulares, mas se esquece e rejeita esta interrelação, quanto aos metacelulares. Na evolução biológica desde a formação da primeira célula, esta interdependência e complementaridade determinaram diferenciações, favorecendo novas formas de intercâmbios com o meio e também o aparecimento de tipos de células com funções variadas e um tipo particular, que inter-relaciona estas funções - os neurônios. À medida que estas interrelações aconteceram, surgiram novas funções que determinaram novas ações até a atual organização psíquica. Ser consciente do processo de autopoiese favorece a construção de uma realidade melhor.
É inestimável a obra deixada por Moreno, mas os conhecimentos científicos atuais nos conduzem a Bermudez, que também um gênio, de uma forma brilhante, iluminado pelas ciências, filosofia, religião, organiza, sistematiza, atualiza e enriquece o Psicodrama moreniano com suas criações e experiências.
A teoria do Núcleo do Eu de Bermudez, está fundamentada e confirmada com os mais recentes conhecimentos científicos. Sem deixar de lado o Psicodrama clássico baseado na ação, Bermudez enriquece com utilização de objetos (objeto intermediário), construção de imagens e sistematização da Psicodança O trabalho com imagens proposto por Bermudez, nos fornece "um campo riquíssimo" (palavras dele), de compreensão e terapêutica do individuo:

"As imagens psicodramáticas facilitam a objetivação do mundo interno e , ao mesmo tempo, favorecem a re-aferências , que provoca novas reações e experiências". (Bermudez 1999)

O que somos, pensamos e sentimos, decorre de conexões e redes neuroniais formadas ao longo de experiências de nossas vidas e comandadas por dispositivos inatos do nosso cérebro. Essas conexões são ativadas e organizadas à maneira de um caleidoscópio de acordo com nossas interações com o ambiente, determinando a formação de imagens mentais (hemisfério direito) gerando idéias, que fazem parte do consciente e inconsciente do individuo.
Moreno nos deixou um método de reorganização das redes sociais – A Sociometria, a Psicoterapia de Grupo. Bermudez, no trabalho com imagens, vislumbra uma reorganização das redes neuroniais do individuo (re-aferências).
As grandes interrogações da humanidade - qual o significado da vida? O que é a mente? Para que serve a consciência? Dúvidas iluminadas atualmente pelos avanços da ciência, que comprovam a veracidade de velhos "mitos", à medida que conhecem como o cérebro habilita a mente. Com estes dilemas em mente, Moreno imbuído de espírito messiânico, acreditava que:
(...) "o homem, é um ser cósmico; é mais do que um ser psicológico, biológico e natural" e mais, que "a ciência e os métodos experimentais, se têm pretensão a serem verdadeiros, precisam ser aplicáveis à teoria do cosmo" (11) Moreno em As Palavras do Pai, diz:
Eu criei tudo
O que foi criado...
No principio. Eu estava só.
Então Eu criei a Minha solidão.
E quando Me tornei dois,
Eu criei a Minha dualidade.
E quando Me tornei três ou mais,
passei a criar com todos os Meus companheiros.
...
Esta é a lei do universo:
Quem é parte da criação
também é parte do criador,
e é uma parte de Mim.(8)

É certo que habitamos um mundo que construímos, tanto o mundo objetivo como o subjetivo, todos nós contribuímos para que o nosso mundo seja como é:

"Diz o texto bíblico, que, quando Adão e Eva comeram do fruto da arvore do conhecimento do bem e do mal, foram transformados em seres diferentes e nunca mais voltaram à antiga inocência."... "O conhecimento do conhecimento compromete. Compromete-nos a tomar uma atitude de permanente vigilância contra a tentação da certeza, a reconhecer que nossas certezas não são prova de verdade, como se o mundo que cada um de nós vê, fosse o mundo, e não um mundo, que produzimos com outros. Compromete-nos porque, ao saber que sabemos, não podemos negar o que sabemos...."Se sabemos que nosso mundo é sempre o mundo que construímos com outros, toda vez que nos encontramos em contradição ou oposição a outro ser humano com quem desejamos conviver, nossa atitude não poderá ser a de reafirmar o que vemos do nosso próprio ponto de vista, e sim o de considerar que o nosso ponto de vista é resultado de um acoplamento estrutural dentro de um domínio experiencial tão válido como o de nosso oponente, ainda que o dele nos pareça menos desejável".(6)

A teoria da do Núcleo do Eu de Bermudez, é condizente com os novos achados científicos. As transformações e novas técnicas propostas e introduzidas ao psicodrama moreniano sempre andaram ao lado da ciência. Suas novas contribuições no processo terapêutico com as imagens, coincidem com os estudos sobre as atividades e funções diferentes dos hemisférios cerebrais desenvolvidos por Gazzaniga, que sustenta que a mente não é um todo indivisível que opera em conjunto para resolver os problemas. O cérebro humano tem uma organização modular, módulos esses que funcionam paralelamente e independentes dos processos conscientes, e nossa espécie possui um componente especial que ele denomina "intérprete" que é o responsável pelas formações das crenças humanas:

"La adquisición y el mantenimiento de creencias sociales son, como todos los fenómenos cognitivos fundamentales, un producto de la organización del cerebro humano, exactamente del mismo modo que lo son nuestros deseos de comer, de dormir y de hacer el amor. Estas propiedades específicamente humanas de la mente son el resultado de la organización del cérebro y, como tales, revelan que muchas de las diferencias aparentes entre las creencias culturales son el producto inevitable del modo como el cérebro interpreta el gran número de ambientes que hay en el mundo". (2)

Sobre as atividades e funções, dos hemisférios cerebrais, é importante destacar uma em particular:

"El cerebro, sobre todo el hemisferio izquierdo, está diseñado para interpretar las informaciones que procesan. En efecto, en aquella zona hay un dispositivo especial- que denomino interprete- cuya actividad es posterior a la culminación de billones de procesos cerebrales automáticos. El intérprete, último eslabón en la cadena informativa del cérebro, reconstruye los hechos cerebrales, y lo hace incurriendo en gruesos errores de percepción, de memoria y de juicio". (3)

É importante que os psicoterapeutas tenham consciência desta função, para não implantarem falsas recordações na tentativa de evocarem recordações reprimidas.
A nossa vida consciente depende de todo tipo de processos automáticos que ocorrem em nosso cérebro, nossos circuitos cerebrais trabalham sem pausa e executam tarefas que cremos serem por nossa vontade. O trabalho do cérebro automático em relação às emoções que sentimos tem uma função indispensável no processo da percepção consciente. Existem estruturas cerebrais relacionadas à consciência, estruturas que, processam sinais do corpo afetado por emoções em forma de sentimentos. Damásio identificou essas estruturas através de estudos em pacientes com traumatismo e doenças neurológicas. São estruturas separadas e com funções diferentes no processamento da consciência, mas que operam com o "vocabulário não verbal dos sentimentos.” Consciência esta, que com a ajuda da memória, do raciocínio, se torna um meio de modificar a existência. Diz Damásio:
"O drama da condição humana advém unicamente da consciência. Obviamente, a consciência e suas revelações permitem que criemos uma vida melhor para nós mesmos e para os outros, mas o preço que pagamos por essa vida melhor é alto. Não é só o preço do risco, do perigo e da dor. É o preço de conhecer o risco , o perigo e a dor. Pior ainda: é o preço de conhecer o que é o prazer e de conhecer quando ele esta ausente ou é inacessível."..... "Mas o drama não é necessariamente tragédia. Em certa medida, de varias maneiras imperfeitas, individual e coletivamente, temos meios para guiar a criatividade e, com isso, melhorar a existência humana em vez de piorá-la. Isso não é fácil de realizar; não há diretrizes a seguir, os êxitos podem ser pequenos, o malogro é provável. Entretanto, se a criatividade for dirigida com sucesso, mesmo modestamente, permitiremos à consciência, mais uma vez, cumprir seu papel de regulador homeostático da existência. Conhecer contribuirá para ser"(1)

Damásio afirma que com as descobertas neurobiológicas, as psicoterapias terão que se adaptar aos conhecimentos atuais. O mais fantástico de tudo isso, é que as técnicas preconizadas por Bermudez, e a teoria do Núcleo do Eu são atualíssimas e está há quase 50 anos entre nós.
A consciência é um fenômeno biológico que surge após determinado nível de organização do sistema nervoso. Com o desenvolvimento da memória, do raciocínio e mais tarde da linguagem, a consciência também se torna um meio de modificar a existência, como diz Damásio e como se tem comprovado com o trabalho terapêutico com imagens proposto por Bermudez; ou seja, a possibilidade de “re-aferências”.
Finalizando, a consciência funciona com imagens. Diz Damásio:

“Porque a sobrevivência em um meio complexo, ou seja, a gestão eficaz da regulagem da vida pode ser feito de maneira muito melhor se houver intencionalmente a antevisão e a manipulação de imagens na mente, aliadas a um planejamento ótimo. A consciência permitiu a conexão de dois aspectos díspares do processo—a regulagem interior da vida e a produção de imagens” (1)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. Damásio, A. (1999), "O mistério da consciência", São Paulo, Ed. Companhia das Letras. P. 44 e 399
2. Gazzaniga, M.S. (1993), "El cérebro social", Madrid, Alianza Editorial. P. 10 e 21
3. Gazzaniga, M.S. (1998), "El pasado de la mente", Barcelona, Ed. Andres Bello. P.15 e 20
4. Jacob, F. (1982), "El juego de lo posible", Barcelona, Ediciones Grijalbo.
5. Maturana, H.; Varela, F. (1994), "De máquinas e seres vivos", X, Ed. Artes Médicas.
6. Maturana, H.; Varela, F. (1995), "A árvore do conhecimento", Campinas, Ed. Psy. P.15 -68-70-76-261 e 262
7. Mecacci, L. (1985), "Radiografía del cerebro", Barcelona, Ed. Ariel. P. 9
8. Moreno, J.L. (1992), "As palavras do pai", Campinas, Ed. Psy. P. 68 e 74
9. Moreno, J.L. (1992), "Quem sobreviverá?", Vol. I, Goiânia, Dimensão Editora.
10.Moreno, J.L. (1993), "Psicodrama", São Paulo, Ed. Cultrix. P. 17
11.Moreno, J.L. (1993), "Psicoterapia de grupo e psicodrama", Campinas, Ed. Psy. P. 15
12.Rojas-Bermúdez, J.G. (1997), "Teoria y técnica psicodramáticas", Barcelona, Ed.Paidós. 

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