O masculino e o feminino na nova consciência

Texto de Rose Marie Muraro e Leonardo Bolff

O masculino e o feminino na nova consciência

Por que este título, se há séculos existe um número incrível de obras sobre o masculino e o feminino? Porque a humanidade está neste início de milênio num novo ponto de mutação cuja origem é a aceleração tecnológica e com ela a aceleração histórica. E esses pontos de mutação são raros nas espécies biológicas.
Na espécie humana houve o primeiro ponto de mutação quando os hominídeos se separaram dos primatas há mais de dois milhões de anos, o que deu início à Pré-história. O lento despertar da animalidade para a humanidade levou mais de um milhão e meio de anos.
As primeiras culturas são as de coleta e, nelas, o primata/humano toma a posição ereta e começa o seu desenvolvimento do córtex cerebral com as suas primeiras conquistas tecnológicas. Um segundo “ponto de mutação” ocorreu aproximadamente há quienhentos mil anos, quando o ser humano iventa o machado de pedra lascada e introduz as sociedades de caça, que criaram novas e diferentes estruturas psíquicas e coletivas. Um terceiro ponto há mais ou menos dez mil anos precipitou-se pela invenção dos métodos de fundir os metais e pela criação da agricultura, ocasionando o fim do estágio nômade e a formação das aldeias, dos estados e dos impérios no sentido antigo do termo. Outra vez a espécie muda de patamar, formas mais elevadas de relação com o meio ambiente e entre os seres humanos se instauram e uma nova consciência brota.
O salto seguinte se deu há menos de trezentos anos com a emergência da civilização urbano/industrial, que provoca uma enorme alteração dos inventos científicos e tecnológicos, uma organização social mais complexa e a individualização da consciência.
Em todas essas etapas emerge simultaneamente a espiritualidade, a capacidade de o ser humano entender-se no conjunto dos seres e decifrar o elo que o liga e religa ao universo e à fonte originária de todo ser.
A nova consciência

Mas é só recentemente, no final do século XX e no início do século XXI que podemos falar realmente da emergência de uma nova consciência. A aceleração histórica e a tecnológica se tornam incontroláveis e imprevisíveis. Mais de 90% de todas as grandes invenções da humanidade foram feitas nos últimos cem anos. Assim, a humanidade caminhou de uma lenta escalada para uma aceleração explosiva, principalmente depois da invenção das tecnologias eletrônicas, das quais a mais importante é a do computador, que dá início à Segunda Revolução Industrial.
Estamos vivendo, portanto, mais um “ponto de mutação” da qual nossa espécie, criador de uma consciência e das novas estruturas humanas. Só que este é, talvez, o mais profundo de todos, tão radical quanto aquele que nos transformou de animais em seres humanos: nos primórdios integrados à natureza, os seres humanos também estavam integrados entre si.
As relações entre os grupos eram de solidariedade e partilha de bens e de vida. Com as sociedades de caça se instauram as primeira relações de violência: os mais fortes começam a dominar e a ter privilégios e o masculino passa a ser o gênero predominante. A consciência de solidariedade e humanidade passa à consciência da competição.
Mas é só quando se inicia o período histórico que a relação senhor/escravo se solidifica como rotina. Nessa hora é matar ou morrer, ou invadir ou ser invadido; ou se expandir ou perecer. E até hoje assim se faz a história e com ela as relações de violência com o meio ambiente.
Isto se acelera muitíssimo na Segunda Revolução Industrial: o aquecimento do clima, o derretimento das calotas polares, a predação dos recursos naturais, o esgotamento das fontes de energia não-renovável, o desperdício da água, as inúmeras espécies em extinção, tudo gerado pela aceleração tecnológica dentro de uma consciência competitiva. Se essa tendência globalizada de violência e destruição não for revertida, é consenso entre os ecólogos que após o ano 2050 a humanidade terá ultrapassado o ponto de não-retorno, o que tornará extremamente difícil reverter o processo de destruição.
Por isso estamos, como espécie, num novo limiar. Ou nos parimos como outra espécie humana, com outra consciência, ou pereceremos. Não há meio-termo. Nessa fase, se faz mais urgente que em outras uma espiritualidade que coloque no centro das suas preocupações a vida, na sua esplêndida diversidade, o futuro comum da terra e da humanidade e, também, o cuidado para com tudo o que existe e vive. Deus emerge de dentro do processo cosmogênico como aquela energia misteriosa que, a partir do caos, tudo ordena como aquele Espírito de ternura e de vigor que tudo faz convergir para formas cada vez mais complexas, conscientes e co-responsáveis.
Essa nova consciência precisa ter no seu âmago a noção de cuidado, de solidariedade, de compartilhamento de vida e dos bens da natureza, criando para isso novas estruturas socioeconômicas, políticas e espirituais.
Agora ela será uma verdadeira mutação humana. Porque terá que ser não individual ou coletiva, mas também planetária. Não só tecnológica, social ou coletiva apenas, mas profundamente espiritual. A esse respeito lembramos 2001, Uma Odisséia no Espaço , de Stanley Kubrick. Na primeira cena do filme um primata toca um monólito vindo do espaço e se transforma em ser humano. E na última cena, um homem já velho e prestes a morrer repete o gesto e se transforma num feto cósmico. Essa intuição talvez seja a única que nos possa salvar.

O masculino e o feminino
Cada fase humana traz uma relação masculino/feminino específica. E, pelo que vimos, foi na maior fase, aquela que durou um milhão e meio de anos, que foram vividas as relações de harmonia e equilíbrio com a natureza e que ainda estão presentes – e para sempre – no nosso inconsciente. Diferentemente do que crê o pensamento patriarcal, a verdadeira adaptação da humanidade não foi pela violência, e sim, pela solidariedade. E a violência é bem recente na história evolutiva humana.
E tanto isso é verdade que o mais importante mito humano, que todas as religiões colocam ou no início ou depois da morte, é o Paraíso Perdido.
Naquela fase, homens e mulheres viviam integralmente. As relações eram igualitárias e a mulher, considerada mais próxima dos deuses porque dela dependia a reprodução da espécie. Os princípios feminino e masculino então – e por um milhão e meio de anos – governaram o mundo juntos.
Nas sociedades de caça iniciam-se as relações de força, e o masculino, que passa a ser o gênero predominante, vem a se tornar hegemônico no período pré-histórico – há oito mil anos -, quando destina a si o domínio público e à mulher, o privado. A relação homem-mulher passa a ser de dominação e a violência, doravante, é a base das relações entre os grupos e entre a espécie e a natureza. Então é o princípio masculino que governa o mundo sozinho.
No fim do século XX, com a segunda Revolução Industrial, a mulher entra para o domínio público porque o sistema competitivo faz mais máquinas do que machos. No início do século XXI as mulheres são praticamente 50% da força de trabalho mundial, ou seja, para cada homem que trabalha, uma mulher também trabalha.
Ora, isto ao menos teoricamente está fechando um ciclo da história: o ciclo patriarcal. Este abriu-se no período histórico junto com a sociedade escravista, quando as mulheres foram reduzidas à sua função procriadora.
Hoje, elas trazem para o sistema produtivo e para o Estado algo radicalmente novo. Foi apenas o homem que se tornou competitivo, porque se destinou ao domínio público. A mulher no domínio privado conservou os valores de solidariedade e partilha. Milenarmente ela tem sido educada para o altruísmo e o cuidado, pois, se o bebê não tiver à sua disposição alguém completamente altruísta, ele não dura um dia sequer.
Atualmente, a mulher é quem traz os novos/arcaicos valores simbólicos de solidariedade da família para o sistema produtivo e para o Estado. Desta forma, a entrada da mulher no domínio público masculino é condição essencial para reverter o processo de destruição.
E isto já está tão claro na consciência coletiva que as Nações Unidas, por meio do Fundo das Nações Unidas para a População _FNUAP, assim começa o seu relatório oficial de 2001, o primeiro deste milênio: “A raça humana vem saqueando a Terra de forma insustentável e dar à mulheres maior poder de decisão sobre o futuro pode salvar o planeta da destruição”.
Este livro é uma pequena colaboração neste sentido, já que o masculino e o feminino agora têm que se integrar em grande profundidade se quisermos sobreviver.

Fonte: Introdução ao livro Masculino e Feminino – Uma nova consciência para o encontro das diferenças. Sextante, 2002


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