Texto de Antonio Sergio Alfredo Guimarães

O BRASIL MODERNO:
UMA DEMOCRACIA RACIAL



A modernidade brasileira é, sem dúvida, produto dos últimos setenta anos. Os sociólogos e cientistas políticos demarcam, geralmente, tal modernidade com a Revolução de 1930, que pôs fim à Primeira República (1889-1929). Se em relação ao Império (1823-1889), a Primeira República procurou modernizar o Brasil através da adoção de novas instituições, da europeização dos costumes (Freyre, 1936) e do incentivo à imigração européia (Seyferth, 1990; Schwarcz, 1993), em continuidade com aquele, manteve uma nacionalidade ostensivamente polarizada, marcada pela enorme distância entre brancos e pretos, civilizados e matutos. Foi apenas a partir de 1930, principalmente com o Estado Novo (1937-1945) e a Segunda República (1945-1964) que o Brasil ganhou definitivamente um “povo”, ou seja, inventou para si uma tradição e uma origem (62).

A idéia fundamental da nova nação é a de que não existem raças humanas, com diferentes qualidades civilizatórias inatas, mas sim diferentes culturas. O Brasil passa a se pensar a si mesmo como uma civilização híbrida, miscigenada, não apenas européia, mas produto do cruzamento entre brancos, negros e índios (63). O “caldeirão étnico” brasileiro seria capaz de absorver e abrasileirar as tradições e manifestações culturais de diferentes povos que para aqui imigraram em diferentes épocas; rejeitando apenas aquelas que fossem incompatíveis com a modernidade (superstições, animismos, crendices etc.). Tal idéia permite o cultivo de uma “alta cultura”, propriamente brasileira, em sintonia com a “cultura popular”, algo que eclode na Semana de Arte Moderna de 1922 (64). Mas, de certo modo, foram as ciências sociais, e não apenas as artes plásticas e a literatura ficcional, as inventoras desse Brasil moderno, através de obras seminais como as de Gilberto Freyre (1969[1933], 1936), Sérgio Buarque de Holanda (1936) e Caio Prado Jr.(1965[1937]).

As bases materiais e econômicas dessa modernidade foram plantadas pela Revolução de 1930. Essas consistem, basicamente, no incentivo a indústria e à substituição da mão-de-obra estrangeira por mão-de-obra brasileira, que passa a constituir propriamente um proletariado, com estatuto político reconhecido e regulado.

A base demográfica, entretanto, já estava consolidada. De fato, entre 1560 e 1850, o governo colonial brasileiro importou entre quatro milhões e meio e seis milhões de africanos para trabalhar como escravos nas plantações de cana, café, algodão, tabaco, nas minas de ouro e diamantes, nas fazendas de gado e no trabalho doméstico e artesão (65). Nesse período, a população branca, quase toda de origem portuguesa, mal rivalizava a população escrava, ficando espremida entre a população negra, mulata e cabocla (66). Depois de findo o tráfico de escravos, o país foi buscar mão-de-obra na Europa, mas estima-se que, entre 1850 e 1932, apenas quatro dos 55 milhões de emigrantes europeus tenham se dirigido ao Brasil, concentrando-se principalmente nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

Conquanto a pequena presença européia, ante a população de origem indígena e africana, tenha acabado por fazer predominar no país uma população biologicamente mestiça, ela nunca pôs em cheque o caráter europeu da civilização brasileira, nem de suas classes dominantes, nem mesmo a cor branca da maioria da sua população (67).

Essa mão-de-obra estrangeira, concentrada quase totalmente em São Paulo, nos estados do Sul e no Rio de Janeiro, dominou a oferta de mão-de-obra industrial e artesanal, alijando do mercado a população negra e mestiça. Apenas com o fim da imigração estrangeira, nos anos de 1930, e a constituição de uma reserva de mercado para o trabalhador brasileiro, tornaram-se possível a incorporação de uma enorme massa racialmente miscigenada ou negra, que migrou para São Paulo e para os estados do Sul e do Sudeste brasileiro, oriunda de várias partes do país, principalmente de Minas Gerais, do interior de São Paulo, do Rio de Janeiro e dos estados do Nordeste, as regiões mais populosas.

 Até então, ou seja, até os anos 1930, o Brasil tinha reconhecidamente uma questão racial, cujos fundamentos eram biológicos e demográficos. Assim, enquanto perdurou a importação de escravos africanos ou enquanto o volume de migração européia foi diminuto, éramos vistos por nossas elites como uma nação sem povo e sem cultura (Skidmore, 1976).

Quando começa a imigração européia, é a ameaça de divisão cultural do país que passa a ser percebida, tal como colocada de modo exemplar por Nina Rodrigues (1933:19), ainda no final do século XIX:

“Ao brasileiro mais descuidado e imprevidente não pode deixar de impressionar a possibilidade da oposição futura, que já se deixa entrever, entre uma nação branca, forte e poderosa, provavelmente de origem teutônica, que se está constituindo nos estados do Sul, donde o clima e a civilização eliminarão a Raça negra, ou a submeterão, de um lado; e, de outro lado, os estados do Norte, mestiços, vegetando na turbulência estéril de uma inteligência viva e pronta, mas associada à decidida inércia e indolência, ao desânimo e por vezes à subserviência, e assim ameaçada de converterem-se em pasto submisso de todas as explorações de régulos e pequenos ditadores”.

Ou seja, temia-se pela qualidade do estoque populacional brasileiro, pela ausência de uniformidade cultural e pela unidade nacional. Todos os temores alimentados por crenças raciais.

Vargas, na política; Freyre, nas Ciências Sociais; os artistas e literatos modernistas e regionais, nas artes; esse serão os principais responsáveis pela “solução” da questão racial, diluída na matriz luso-brasileira e mestiça de base popular, formada por séculos de colonização e de mestiçagem biológica e cultural, em que o predomínio demográfico e civilizatório do europeu nunca fora completo a ponto de impor a segregação dos negros e mestiços. Ao contrário, a estratégia dominante sempre fora de “transformismo” e de “embranquecimento”, ou seja, de incorporação dos mestiços socialmente bem-sucedidos ao grupo dominantemente “branco”.

Se a Primeira República fora responsável pela europeização dos costumes brasileiros e pela introdução de milhões de europeus no Sul e no Sudeste do Brasil, em detrimento da população mestiça, oriunda do caldeirão colonial, a Revolução de 1930 e a Segunda República tiveram o bom senso de desarmar a bomba étnica que se formava em conformidade com os temores de Nina Rodrigues.

Como vimos anteriormente, a lógica da política republicana com relação à população negra (de origem africana) foi balizada por três construções simbólicas: 1) o reconhecimento da escravidão como um sistema inumano e aviltante (ao contrário da justificativa monarquista, escravista, da escravidão como tempo da colonização cultural dos negros e índios, ou seja, da sua “domesticação” ou “civilização”); 2) o reconhecimento da dívida cultural que a nação brasileira tem em relação aos negros (tratar o negro como um colonizador, foi uma das maiores inspirações de Gilberto Freyre em Casa Grande & Senzala); 3) a idéia de que, enquanto povo, os brasileiros “ultrapassaram” os elementos formadores da nação (os brancos, os negros, os índios-em termos raciais- ou os portugueses, italianos, nagôs, bantos, tupinambás, guaranis etc.- em termos nacionais) para se constituir numa meta-raça, num povo, o povo brasileiro(68). Segundo tal representação, largamente freyreana, nós não temos propriamente uma “raça” – não somos brancos, negros ou índios-, mas uma nação: somos um povo mestiço. Qualquer dos três pólos, se reivindicado sem mestiçagem, é estrangeiro à nação. Assim, diz Freyre em Casa Grande & Sensala (1969[1933];395): “todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma e no corpo a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena ou do negro”.

... Se as migrações internas e a criação de uma sólida cultura nacional, de bases mestiças e populares, de origens principalmente nordestinas, baianas, cariocas e mineiras, foram capazes de desarmar a bomba étnica que se formava em São Paulo antes dos anos 1930, elas não evitaram, porém, a emergência ou continuidade de novos problemas, tais como o preconceito racial e regional e as crescentes desigualdades raciais. Do mesmo modo, a crença na democracia racial fora tecida por sobre a lenda da excepcionalidade brasileira, que deixava de ser plausível à medida que outras sociedades pós-coloniais, como Estados Unidos e Canadá, superaram a segregação racial através de soluções como convívio multiracial e multicultural, numa situação de convivência democrática mais igualitária em termos de oportunidades de vida.

UMA NOVA IDENTIDADE NACIONAL BRASILEIRA?

A configuração descrita acima foi forte o suficiente para sedimentar o sentimento de pertença à nação brasileira, no período pós-abolicionista. Apenas, duas grandes tensões pesaram sobre tal sentimento, no período que vai dos anos 1940 aos anos 1970 do século XX. Primeiro, o fato de o Brasil ter cerrado fileira com os Aliados, durante a Segunda Guerra Mundial, se contrapondo ao eixo (Alemanha, itália e Japão), exigiu uma assimilação muito rápida das comunidades e colônias italianas, alemãs e japonesas, surgidas da grande imigração internacional da virada do século, exacerbando os sentimentos nacionalistas (Seyferth, 1990). Segundo, a nova ordem econômica surgida no pós-guerra (o desenvolvimento sustentado), significou um aumento do desequilíbrio regional (o Nordeste agrário cedendo terreno ao Sudeste e ao Sul industrializados). A decisão de Vargas de reservar o mercado de trabalho urbano aos brasileiros (lei de 2/3) reforçou as migrações internas, fazendo com que grandes levas de nordestinos se dirigissem aos centros urbanos do Sudeste ou às áreas de agricultura moderna e fronteira do Sul e do Sudeste. A competição que então se instalou no mercado de trabalho, tanto quanto o estranhamento cultural, são responsáveis pelo surgimento de estereótipos regionais negativos (“baianos”, “paraíbas” e “nordestinos”), assim como nacionais(“português”), visto que os portugueses gozavam dos mesmos privilégios dos nacionais. Tais fenômenos, ainda que importantes, apesar de pouco estudados, não foram suficientes para levar à crise o sentimento nacionalista. A “regionalização” dos preconceitos e estereótipos foi quase sempre a regra, reforçada por uma socialização regionalizada, com seus heróis, seus santos, suas datas cívicas, suas festas, comidas típicas etc... Na verdade, mas apenas nesse sentido, o sentimento de pertença nacional brasileira continuou fraco (69).

A crise real sobreveio nos anos 1980, com a estagnação econômica, a crise financeira e a falta de direção política clara. A dificuldade de reconversão e de reinserção brasileira na nova ordem mundial, galvanizada pela crise de governabilidade, levou a identidade nacional aos limites da tensão. São índices da crise do modelo assimilacionista e heterofóbico de nação alguns elementos que passo a enumerar. Primeiro, o ressurgimento, ainda que por breve período, de movimentos separatistas, principalmente no Sul do país. Segundo, o surgimento de movimentos racistas voltados contra nordestinos e negros, principalmente no Sudeste, tais como os Carecas do ABC etc. Terceiro, o fato de que, pela primeira vez em sua história, o Brasil passa a ser uma origem importante na emigração internacional. Quarto, o fato de uma grande leva de brasileiros de segunda, terceira e quarta geração buscarem uma dupla nacionalidade, aproveitando-se da mudança da legislação brasileira. Quinto, o movimento de “reafricanização” dos costumes negros no Brasil, gerenciado politicamente pela construção da identidade negra. Sexto, o movimento de reetinização de povos indígenas brasileiros, dados como desaparecidos, no Nordeste, Sudeste e Sul do país.

Guimarães, Antonio Sergio A.- Classes, Raças e Democracia, editora 34 Ltda, FUSP, pp. 117-124, São Paulo, 2002   

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

HISTÓRIA DO PSICODRAMA: Da evolução do criador à evolução da criação

Reflexão sobre relacionamentos: Crônica de Rubens Alves

Teoria da Espontaneidade do Desenvolvimento Infantil - TEDI