By Leonídia Guimarães

Transcrição do Vídeo IV – O Cérebro ao Espelho

Ao ouvir uma novidade qualquer a imaginamos e prevemos no nosso nível inconsciente:

- Como ela compreendeu que a regra global é uma regra na qual os cinco sons não são idênticos, quando ouve os cinco sons idênticos, ela considera o som como uma violação da regra. Há por isso no espírito e no seu cérebro determinados processos que lhe vão permitir “titetar” essa violação da regra.

O que o cientista vai observar é o sinal emitido dos elétrons. Ele mede que a sucessão de um som no cérebro aparece de forma inconsciente duzentos milésimos de segundos depois da sua emissão. Todavia, para esta mesma zona do cérebro, quando ela reage à violação da regra conscientemente, a reação surge quatrocentos milésimos de segundos depois da emissão do som. Esse é um bom exemplo da tomada de consciência.

- A sucessão tem dois tempos: há sempre um primeiro tempo que é bastante rápido, a que chamamos um tratamento que vai do exterior em direção ao interior do cérebro; ou seja, temos áreas que se ativam e vão em direção das áreas associativas. Esse primeiro tempo de sucessão pode ser ou não seguido de um segundo tempo que, na mesma região, vai funcionar duas vezes: uma primeira vez de forma inconsciente, e quando houver um segundo efeito nesta mesma região. Em geral, temos um acesso à consciência dessa representação. É um resultado bastante geral, ou seja, essa temporalidade entre os dois tempos da sucessão, entre as duas etapas da sucessão vai funcionar igualmente noutras coisas: para as recordações, para a ação, para os gestos, para a motricidade e para as emoções.

Na passagem do inconsciente para o consciente o papel da atenção, a capacidade de triagem e adaptação permite compreender melhor como é que o nosso cérebro funciona. Mas como é que se cria o conhecimento? E aonde é que se aloja?

Walter Freeman: Quando impedimos aos nossos neurônios que parem de funcionar, isso é conhecimento. Assim como, quando lhes impedimos que entrasse em ação. Quando chega um estímulo ao cérebro trata-se de um evento exterior. Cada um dos sentidos divide-se em fragmentos moleculares. Todos esses processos encerram em si a formação das chamadas obsessões.  São pacotes de ondas específicas nos córtex sensoriais, que se conectam. Em seguida, passam pelo hipocampo onde são detectados no tempo e no espaço. Quando é que se passou e onde é que se passou no mundo exterior. Quando a informação torna a sair, vai em direção ao córtex, incluindo o córtex motor, com vistas à reação a adotar. Quando perguntamos aonde se encontra o conhecimento, pois, ele está por todas as conexões sinápticas, por todo lado.

Só há cinco anos possuímos instrumentos que nos permitem observar estes fenômenos, conseguindo identificar a organização global das oscilações que se fazem, desfazem e refazem novamente, sem parar, a todos os décimos de segundos. O pensamento é isso mesmo: São as dinâmicas que se seguem às imagens conscientes e inconscientes que nos passam pela cabeça. É a expressão de um conhecimento que é recriado sem parar. É auto-organização.

Walter Freeman: E esses milhares de milhões de neurônios cooperam entre si sem parar. O que nos inventa um enorme problema: porque isso vai além de todos os nossos conhecimentos em neurociências, a propósito do que podem fazer os neurônios. E ainda não encontramos um matemático que nos consiga dar as equações de base, necessárias para descrever a consciência e a intencionalidade.

Enquanto esperamos pelo modelo matemático, que nos vai permitir decodificar os mecanismos do cérebro, os cientistas continuam a explorar a relação fascinante entre o nosso cérebro e o corpo do qual faz parte. E por vezes, ao estudarem determinadas patologias, podem mesmo descortinar sobre quem controla o quê.

Ramachandram: Olhem só como as águas, ao cair sobre o gris das falésias, escavam esses sulcos. Seguiu o caminho onde encontrava menos resistência e, dessa forma, a fenda foi se tornando cada vez mais profunda. Podemos fazer uma analogia entre estes sulcos e o caminho que tomam as recordações no cérebro. O caminho através do qual aprendemos as coisas novas. Em minha opinião, é o que se passa no caso de um acidente cerebral ou de um membro fantasma. Para um membro fantasma o braço foi paralisado porque o membro que liga o braço foi seccionado. Cada vez que o cérebro envia um sinal ao braço, a ordenar-lhe que mexa, a resposta visual é que ele não pode mexer. Essa mensagem é então inscrita nos circuitos do cérebro no lobo parietal. Talvez nas zonas do lobo frontal. E o cérebro acaba por deixar de enviar ordens para o braço. Temos assim uma paralisia aprendida. Nos primeiros dias de um AVC, o edema no cérebro é o que, em parte, provoca a paralisia. Mas mesmo depois do inchaço desaparecer do cérebro, talvez já tenha aprendido que o braço está imobilizado, porque ficamos com o braço bem mais paralisado do que deveria estar. Será que podemos desaprender uma paralisia aprendida?      Tivemos a idéia de colar um espelho dentro de uma caixa, no centro de uma mesa. Colocamos aqui o braço direito e olhamos o seu reflexo ao espelho. Ficamos com a impressão de que o membro fantasma voltou, ressuscitou, por termos a ilusão visual de que ele estava lá. O mais espantoso é que muita gente sente que o braço fantasma se anima de súbito, e começa a mexer, ainda que ele não exista. Quando o braço fantasma recebe o sinal visual, há de novo uma sensação de movimento, isso alivia muitas vezes a dor, por vezes a dor acaba mesmo por desaparecer:
- “No início eu estava muito mal, quando chegamos a 8 numa escala de dor que vai até 10, não somos hospitalizados, mas quase. A primeira vez que experimentei a caixa com espelho, desci para 1 em 10. Fiquei muito impressionado. Ao final de 1 ano, um ano e meio, já não tomava mais os medicamentos para a mão fantasma. Atualmente, há três anos que não tomo medicamentos.
Desde que fizemos essa descoberta, há cerca de dez anos, varias outras experiências no quadro de ensaios clínicos em grande escala, mostraram uma recuperação significativa no braço, no caso de um acidente cerebral. E ainda que isso apenas ajude a 10% dos pacientes, e que nem saibamos quais, 10% representam milhões de pessoas em todo mundo.

Por sua vez, Lionel Naccache, viu-se confrontado por uma estranha patologia: um de seus pacientes foi atingido pela síndrome de negligencia, ou seja, perdeu a consciência de um dos lados do corpo:

Lionel Laccache: Como veremos, ao tratarmos de consciência de alguma coisa, tendemos a dar um cunho científico. Tomemos como exemplo um paciente negligente que não reconhecia uma parte do seu corpo como sua. Sofria de um sintoma que achava uma das mãos estranha. No decurso de uma consulta, perguntei ao paciente, quantos éramos naquela sala. Ele respondeu logo que éramos duas pessoas, ele e eu, duas pessoas, até aí tudo bem. Em seguida, perguntei quantas mãos existiam naquela sala. Ele respondeu que como éramos dois, cada um com duas mãos, havia quatro mãos. Nesse momento mostrei-lhe a sua mão esquerda e perguntei de quem era àquela mão. Ele respondeu que a mão não era dele, mas como éramos dois, a mão tinha de ser minha. Então lhe mostrei as minhas duas mãos e apontei a terceira mão. Perguntei de novo de quem era e fomos apanhados por uma história em que ele estava convencido de que aquela mão não era dele, e conseguia elaborar um discurso totalmente fictício, mas que acreditava piamente.   

Transcrição do Vídeo V – O Cérebro ao Espelho

Lionel Laccache: Ele vai responder que talvez eu tenha três mãos, ou talvez seja a mão de outra pessoa, talvez seja uma mão cortada que temos na sala, mas nunca admite que a mão é sua. Um exemplo: os princípios mostram que o dado enviado da consciência inclui sistematicamente essa camada de crença que chamamos de ficção. É fácil vermos que é ficção quando se trata de algo falso. Contudo, na maior parte das vezes nossas ficções são a superfície que consideramos verdadeira, são corretas. Se os interrogarmos sobre suas convicções políticas, sobre suas crenças e mesmo sobre sentimentos interpessoais, ou até mesmo sobre o seu relacionamento com os extraterrestres, vimos que surge uma diversidade de opiniões. Enquanto discutimos com nossos semelhantes vimos que, estas são coisas extremamente fortalecidas por uma convicção, por uma crença bastante poderosa.

As ficções são mais facilmente colocadas em evidência nos casos patológicos, mas cada indivíduo tem as suas. Para dar sentidos ao mundo em que vivemos, inventamos as nossas próprias ficções, as nossas próprias histórias. Cada indivíduo tem as suas, mas algumas se tornam ficções coletivas às quais aderimos com alguma facilidade. Para compreendermos como as construímos, comecemos por observar o outro:

Ramachandram: Há células que se ativam cada vez que o símio faz um gesto preciso, isso é conhecido já há 20 ou 30 anos, mas o que Giacomo Rizzolatti, na Itália, descobriu foi que alguns desses neurônios, a que chamamos “neurônios espelho”, também se ativam no símio que observa outro símio a puxar uma alavanca. O mesmo acontece com os humanos. Através de imagens funcionais podemos observar que uma zona do cérebro reage quando uma pessoa faz um gesto; e a mesma zona reage quando ela observa uma pessoa a fazer a mesma coisa. Isto tudo é espantoso, é como se sentíssemos a dor de outra pessoa. É por isso que eu gosto de chamar neurônios de empatia ou neurônios Dalai Lama. Na verdade, esses neurônios batem a barreira que existe entre nós e os outros. Esta é a base de várias tradições filosóficas e místicas, sobretudo orientais. Segundo as quais não existe qualquer diferença entre o nosso espírito e o outro. Essas tradições eram expressas em metáforas. Mas ao estudarmos estes neurônios podemos mostrar que, na verdade eles batem à sua maneira, a barreira que existe entre nos e os outros. Esta capacidade de imitar é o próprio fundamento da cultura humana, da transmissão da cultura. Em vez de um longo processo natural darwiniano, que leva centenas de milhares de anos, ou mesmo bilhões, podemos transmitir toda a informação numa só geração.

Estarão os neurônios espelho na base da transmissão dos conhecimentos? Serão eles os principais intervenientes nas nossas referências culturais como a representação artística ou simbólica?

Ramachandram: Sempre pensei na metáfora, seja na linguagem, seja na arte. Vou dar um exemplo saído da arte indiana: aqui o deus Shiva está com a sua companheira Parvati, que está sentada ao seu colo. Olham-se mutuamente, olhando também o mundo. A idéia transmitida é a de que o amor não é só olharmo-nos nos olhos de uma forma narcisista, mas sim olhar o conjunto do universo, o mundo a nossa volta. O que é mais interessante é notar que ele tem sua mão pousada como se fosse segurar bocas, pra beijar. Este gesto deve ativar os neurônios espelho no cérebro. Mas o artista exagerou no gesto e esses neurônios devem ser hiperativados para que possamos perceber, de forma tão vibrante, as delicias do amor. Se olharmos com mais atenção, este cenário torna-se uma espécie de metáfora de todas as dualidades da existência, dos pólos opostos como a noite e o dia, o mal e o bem, o preto e o branco, a felicidade e a tristeza, o homem e a mulher. Todas as dualidades e os antagonismos que caracterizam o mundo se esvaem. E é precisamente isto que vimos aqui, essa intimidade faz cair o muro que separa os opostos.

Estas dualidades passaram a ser uma grande preocupação para os neurocientistas. Para Walter Freeman o cérebro, órgão do individualismo é o órgão da socialização. E desaprender é tão fundamental como aprender:

Walter Freeman: Consideramos o cérebro como um órgão de adaptação que nos garante mais do que a própria sobrevivência, que nos permite agir para mudar as coisas. E que fique claro que o cérebro não faz tudo sozinho. O corpo está implicado em toda a sua totalidade.

Transcrição do Vídeo VI – O Cérebro ao Espelho


Walter Freeman: No processo de adaptação, desaprender é tão crucial como aprender. Aprendizagem é um reforço das conexões sinápticas. Para desaprendermos, para nos desfazermos de hábitos, as conexões sinápticas devem ser flexíveis. Mas este é um processo cumulativo através do qual as pessoas vão aprendendo, diferenciando-se cada vez mais umas das outras. E tudo que conhecemos sobre aprendizagem implica este processo, que nos compara com o dos outros. Ora, as lições mais importantes que nos chegam vêm da paleontogologia, da história da raça humana ao longo dos últimos 500 mil anos, talvez 3 milhões de anos: é a importância da socialização. Somos antes de tudo uma espécie social; e o cérebro não tem como única função controlar. É um órgão de socialização. Como nós conseguimos ultrapassar as barreiras que nos separam? O mecanismo que torna isto possível é a cooperação. Fazemos mais do que simplesmente agir: agimos em consonância. Há pouco tempo, descobrimos um grupo de hormônios que não servem propriamente para a aprendizagem, mas que são bastante ativos no que eu chamo de desaprendizagem, na adaptação uns aos outros, um processo que se assemelha a uma lavagem cerebral. Os gestos que nos habituam na socialização se encontram em todas as formas de doutrinamento: na religião, na política, no alistamento dos jovens para o exercito e que sofrem uma verdadeira lavagem ao cérebro, ou nas formas de integração que as empresas ou equipes desportivas empregam. Todas essas atividades que implicam uma fusão dos sentidos num funcionamento organizado exigem uma desaprendizagem, que é facilitada por uma substancia química chamada Ocitocina. Encontramo-las na rua sob o nome de Ecstasy: Ajuda a dissolver os estímulos sinápticos pré-existentes de uma forma seletiva, de forma a permitir a emergência de uma nova estrutura.

 Aprender e desaprender. É esta a atividade constante do nosso cérebro. E os neurocientistas sempre sonharam em compreender os segredos de uma sociedade de servos que cooperam entre si, ao invés de se isolarem em fundamentalismos e acabarem por se destruir no planeta.

Walter Freeman: Um arquétipo da cooperação é a dança. Em todas as tribos primitivas a dança é o elemento central do processo de socialização. É o ritmo que ajuda a juntar as pessoas para formar grupos que cooperam entre si. Isto é próprio dos humanos. É um mecanismo que envolve a secreção da Oxitocina. Ela não provoca a amnésia, pois as pessoas se lembram muito bem do que eram antes, e sabem o que são depois. Mas é essencial para a formação do laço social.
Sabemos muito pouco sobre este processo. Na verdade só no decurso deste último século, se tornou primordial para o futuro das neurociências o estudo do processo de socialização. O fato de existirem tantos conflitos no mundo, no nosso bairro, em cada uma das cidades em que vivemos, onde temos bandos de rua onde os jovens brincam com o futuro e perdem o rumo, tornando-se presas fácies para a formação de laços sociais, através desse processo. Como não os compreendemos, procuramos lutar contra eles, metendo-os na prisão.  Este é o fracasso das neurociências: não ter conseguido ainda compreender este aspecto da dinâmica do cérebro. E, ao mesmo tempo, um fracasso do nosso modelo de aprendizagem enquanto utensílio para desenvolver uma sociedade estável.

Este mecanismo do cérebro aproxima os neurocientistas do conceito de infinito dos antropólogos. O ser humano é humano justamente por desenvolver o seu papel social. E se este homem social não passasse de um cérebro social?

Ramachandram: Pergunto-me aonde tudo isto vai nos levar do ponto de vista ético e humanista. Porque acredito que chegará há uma altura que teremos uma compreensão profunda do cérebro, tal como hoje compreendemos o fígado. Aí, sim, estaremos em posição de controlá-lo. Isto já é possível com drogas como a cocaína e a heroína. Mas suponhamos que um dia possamos criar drogas não aditivas ou mesmo as de euforia, que nos possibilite um êxtase absurdo e sem limites, que nos tornem realmente felizes. Imagine que eu poderia pegar o meu cérebro, mantê-lo num boião, ligá-lo a alguns eletrodos e fazê-lo pensar, tornando-o fonte de alimentos felizes, possibilitando-o que visse Deus. Se eu pudesse fazer isso, estaria diante de uma escolha ética: Você poderia dizer-me que escolheria ser você mesmo, ou outros. Muitos recusariam esta possibilidade por conhecerem apenas o que são; o que são realmente. Mas o cérebro verdadeiro é o cérebro dentro do boião. E esse boião chama-se crânio. O cérebro está dentro de um boião, estimulado por flutões. Qual é a diferença? Com o que se passa algumas pessoas querem ser elas próprias e não o cérebro artificial. Onde é que está a fronteira? Este é o maior dilema mundial que a humanidade terá de enfrentar no futuro.

Com Galileu tivemos de admitir que a terra não é o centro do universo. Atualmente, estaremos nós preparados para aceitar a idéia de que a superioridade do homem no mundo dos seres vivos, a consciência, não passará de uma ficção coletiva?

- Todo mundo sabe como esmagar uma mosca, basta usarmos um mata-mosca. Mas a melhor forma de matarmos uma mosca, e concordo que a matemos baseado naqueles meus estudos, é aproveitarmos a sua atenção seletiva: quando usamos apenas um mata-moscas, a mosca olha para nós e foge. Mas, se nos aproximarmos da mosca com três dos nossos dedos, lentamente, a mosca vai fixar um dos dedos, depois outro e depois o terceiro. A sua atenção limitada será então repartida por três dedos. E aí poderemos a surpreender, porque a dada altura ela terá fixado o dedo errado, e então, é apanhada.

Fonte de Dados encontrada no Vídeo:
Tradução, Cenário e Entrevistas – Françoise Lindeman
Realização: Phillippe Bayaucq
Montagem: Véronique Maison    

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